depoimento

A saúde de nossas universidades. Por Charles Mady

A SAÚDE DE NOSSAS UNIVERSIDADES

CHARLES MADY

Abrem-se, assim, portas e portões para enormes conflitos de interesses, com projetos pessoais, ou de pequenos grupos instalados no poder, com sucessões previamente garantidas por caminhos tortuosos, que terminam em decadência, em destruição, a serviço de corporativismos…

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO, 
EDIÇÃO DE 4 DE DEZEMBRO DE 2019

Tenho exposto opiniões sobre nossos sistemas de saúde e educação, sempre dando abertura a concordâncias e discordâncias, com a intenção de gerar diálogos construtivos. Tento, dessa forma, colaborar na elaboração de ideias em temas espinhosos, raramente abordados por diversas razões, entre elas interesses corporativos poderosos, além da falta de conhecimento adequado sobre esses assuntos. Nessas discussões, pontos mais sensíveis são evitados, quando se trata de temas universitários, como os relacionados à formação dos corpos docentes, e à forma como as atividades didáticas, científicas, assistenciais e administrativas são desenvolvidas. Minha visão pode ter vieses, pois minha atuação ocorre predominantemente num hospital-escola, o Incor, de São Paulo, e numa área acadêmica, a Faculdade de Medicina da USP, pontuais, dentro de um amplo universo. A discussão passa obrigatoriamente pela forma como esses centros de ensino são geridos e como são formados os grupos de liderança. São nossas gestões saudáveis para os alunos, e para a sociedade?

Como em todas corporações, há sistemas de gestão estabelecidos no comando dessas entidades, com seus lados positivos e negativos. Esses sistemas, se tiverem o perfil construtivo institucional, com base em regras bem definidas, levarão a uma boa governança, dificultando muito o aparecimento de vícios. Estes criam núcleos de poder para poucos, geralmente fisiológicos, com altas doses de nepotismo, e conflitos de interesses incompatíveis com a boa saúde acadêmica. O lado político do sistema passa a pesar muito mais que o mérito necessário para manter a qualidade das universidades.

…Uma ideia: instituir um fórum comandado por reitores, com comissões democraticamente eleitas, heterogêneas, para levar adiante um trabalho árduo, e de longa duração, visando qualidade. Os reitores das três universidades públicas estaduais paulistas têm alta competência e credibilidade para iniciar, e comandar, um processo dessa envergadura…

Abrem-se, assim, portas e portões para enormes conflitos de interesses, com projetos pessoais, ou de pequenos grupos instalados no poder, com sucessões previamente garantidas por caminhos tortuosos, que terminam em decadência, em destruição, a serviço de corporativismos. E tudo conduzido “dentro da lei”. Esses sistemas têm uma “ética” própria, de silêncio e conivência, e apontar erros dolorosos condena pessoas à escuridão eterna, destruindo-se personalidades e reputações com relativa facilidade.

Hoje, as versões são mais fortes que a realidade. Quantos profissionais de alto nível foram perdidos por esses motivos? Quanto de qualidade se perdeu? As consequências são conhecidas por todos, pois uma vez ou outra vazam, para a imprensa leiga, poucos de muitos escândalos consequentes a esses sistemas. Como a reforma política neste país, nunca foi tão necessária uma reforma universitária, para diminuir a incidência de más gestões. Lembrando: boas gestões são transparentes.

Uma ideia: instituir um fórum comandado por reitores, com comissões democraticamente eleitas, heterogêneas, para levar adiante um trabalho árduo, e de longa duração, visando qualidade. Os reitores das três universidades públicas estaduais paulistas têm alta competência e credibilidade para iniciar, e comandar, um processo dessa envergadura. O constante declínio de qualidade deve ser interrompido, e a mudança de mentalidade dos corpos docentes talvez seja item tão ou mais importante que a falência financeira que vivemos. Insisto em dizer, que, hoje, a qualidade dos recursos humanos é muito mais importante que tecnologia de última geração, pelo menos no meio onde trabalho. As gerações futuras seriam muito beneficiadas, pois a contaminação pelos maus exemplos já é sentida atualmente. Os maus exemplos dão aulas de desserviço à formação ética de nossos alunos, com consequências funestas para o futuro da prática médica.

…Cito, com alguma frequência, um pensamento de Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”…

Perguntas e ideias se impõem, e estas devem partir de amplo debate dentro dessas comissões e da sociedade. Como exemplo de temas amplos, o quanto nossas gestões são democráticas, representativas dos corpos docentes e discentes? Nossas regras, nossas “constituições”, são adequadas para os tempos atuais, ou são mantidas desde a fundação de cada universidade? São efetivas hoje, como eram antigamente? Nossas lideranças são escolhidas de forma adequada, ou persistiremos em sistemas feudais, onde poucos podem muito, com as consequências aqui expostas, conhecidas de todos, mas pouco discutidas pelo temor de consequências? Existem critérios de julgamento, com autoridade suficiente para apontar erros e acertos, diminuindo a possibilidade de se poluir gestões? Tal e qual os ministros do Supremo Tribunal Federal, a um Professor Titular quem tem o poder de aplicar sanções? Qual é a autoridade sobre eles dos órgãos responsáveis? Eles são vitalícios e absolutos. Não seria adequado julgar periodicamente, sem corporativismo, todos os professores, analisando produção, dedicação – enfim, resultados? O quanto as universidades evoluiriam com reformas direcionadas a essas finalidades? O sucesso na carreira não deve ser material ou social, e sim acadêmico. Como já inúmeras vezes afirmei, a finalidade primeira de um professor é a academia, que já está cansada de professores que são mais empresários e turistas que professores.

Em minha vida universitária, que repito, é pontual, assisti a inúmeras mudanças de currículos, a grande maioria com efeitos cosméticos. Essas mudanças não atingem, ou não atingiram resultados, pois os recursos humanos permanecem e permaneceram com os mesmos vícios. Numa reforma, deve-se dedicar grandes esforços para mudar mentalidades e cultura. Temos, em nosso meio, grupos profissionais altamente qualificados, que deveriam servir de exemplo para nós e para o mundo. Temos recursos humanos de elevado nível ético e profissional. Angustia observar a dificuldade encontrada por alguns desses grupos de profissionais em atingir postos universitários de liderança.

 Cito, com alguma frequência, um pensamento de Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Devemos aprender com os fatos desabonadores que ocorrem em nosso meio, e tirar boas lições, e com eles ensinar os alunos a trilhar caminhos mais saudáveis.

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Resultado de imagem para charles mady*CHARLES MADYPROFESSOR ASSOCIADO INCOR-FACULDADE DE MEDICINA DA USP.

E-MAIL: CHARLES.MADY@INCOR.USP.BR

 

 

charles.mady@incor.usp.br

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