Viva o Cardeal. Por José Paulo Cavalcanti Filho
VIVA O CARDEAL
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO
…É como se fosse uma premonição. Que quase todos os apóstolos escolhidos por Jesus tinham essa profissão. Mas deve-se, por fim, destacar, aqui, um estranho dom que tem. O de fazer com que todos os fisicamente próximos dele se sintam em paz. Como se uma aura misteriosa o cercasse…
Vaticano. Amanhã, o teólogo e filósofo português José Tolentino Mendonça vai ser Cardeal. Em São Pedro, assim se diz por aqui. Foi uma ascensão rápida. Ano passado, era capelão na freguesia do Rato. Em Lisboa. E membro do Conselho Pontifício da Cultura (nomeado por Bento XVI). Em Roma. Lá, conheceu Francisco. Quase um desconhecido para o grande público, em fevereiro de 2018 conduziu o Retiro Quaresmal do Papa. “Interessa-me a espiritualidade do cotidiano”, disse na ocasião. A impressão que causou foi tão forte que logo iria ser Diretor da Biblioteca e do Arquivo Secreto do Vaticano. Arcebispo de Suava (África). E, agora, Cardeal. Com 53 anos. O segundo mais novo, entre todos. No mesmo dia em que correu a notícia da nomeação, recebemos seu artigo semanal para os jornais. Reafirmando tema tão atual, que é a solidão humana. Para uma (limitada) ideia de quem se trata, seguem trechos desse pequeno texto:
“À entrada de um café, aviso gentil impresso em tamanho garrafal, impossível de passar despercebido: Não temos Wi-Fi. Conversem uns com os outros. E, como tudo na vida, há quem o lesse e entrasse no estabelecimento a sorrir; e há quem, com visível desconforto, procurasse outro poiso. Conversar com os outros, ainda o saberemos fazer? Hoje, continuamos a conversar… no afã por conectar com o distante, e empobrecemos a relação com o que está próximo. O nosso discurso povoa-se de intermitências… Estamos e não estamos. O tempo real de escuta cai. A concentração dura o instante de um relâmpago. As conversas precisam de tempo. São as deambulações, as digressões e as derivas que nos conduzem à ciência do encontro, que nos desarmam enquanto falamos ou escutamos, que nos sobressaltam ou comovem, que nos deslocam interiormente, que nos interligam.
“Montaigne definiu a conversa como um falar franco que abre caminho a um outro falar. É um belo modo de descrever aquilo que numa conversa verdadeira acontece, quando a confiança oferecida pela palavra e sustentada pela escuta autorizam a expressão desse outro falar que está submerso em nós. Por isso, persiste sempre uma tensão na experiência da conversa… A vida é, de fato, essa circularidade. O autor dos Essais compara-a ao que acontece numa partida de tênis. Os interlocutores não estão estáticos. Mesmo parados movem-se, segundo a geometria da bola que voa de campo a campo. E o importante, por fim, não é fazer vencer as minhas ideias, nem se adequar às do outro, mas reagir em sintonia, compassar, cadenciar, aprender a alegria da troca”.
Francisco, ao assumir, disse que vinha “do fim do mundo”. Com o desejo de “trazer as periferias para o centro”. Em sua missão reafirmando, sempre, uma pregação permanentemente a serviço dos mais frágeis. E contra a exclusão. Pode não ter conseguido ainda mudar, no tanto que desejaria, a Igreja Católica. Mas, ao menos, vai mudando sua hierarquia. O protocolo, no Conclave de Eleição dos Papas, havia já sido alterado por João Paulo II. Ao determinar que só aqueles com até 80 anos teriam seus direitos mantidos. Rude golpe na velha Cúria. Com isso, dos 228 cardeais de hoje, só 128 votam. E podem ser votados. Francisco já fez 66 deles (52%) E, com o tempo, vai aumentar esse número. Mudança relevante que vem fazendo, aos poucos, é no peso dos votos. Com redução na importância dos continentes mais ricos. A Europa, que tinha 60 cardeais eleitores, hoje tem só 54. E América do Norte, de 14, caiu para 12. Enquanto aumentaram América do Sul, de 19 para 23. África, de 11 para 19. Ásia, de 10 para 16. E Oceania, de 1 para 4.
… “o importante, por fim, não é fazer vencer as minhas ideias, nem se adequar às do outro, mas reagir em sintonia, compassar, cadenciar, aprender a alegria da troca”.
Tolentino aprendeu, com a vida, que a esperança é o contrário da utopia. E faz parte desse processo de reforma da Igreja. Amigo de Pernambuco, aqui veio diversas vezes (2008/15/17). E é, sobretudo, um grande poeta. Um padre poeta. Com quase 20 livros publicados. Da Madeira, é filho de pescador. Até confessa isso no seu artigo desta semana:
“Este verão revi o filme de Roberto Rossellini, Stromboli, e fiquei siderado com a cena da pesca do atum, mostrada ali como uma coreografia primitiva, intensíssima, até pungente. Durante essa longa cena só me recordava de meu pai, que foi também pescador. Eu fixava-o, com nitidez, de barco em barco, entre as personagens de Rossellini. Vestia uma camisa verde como há muitos anos, na última vez que o vi”.
É como se fosse uma premonição. Que quase todos os apóstolos escolhidos por Jesus tinham essa profissão. Mas deve-se, por fim, destacar, aqui, um estranho dom que tem. O de fazer com que todos os fisicamente próximos dele se sintam em paz. Como se uma aura misteriosa o cercasse. Por isso lhe disse, quando ainda era padre, “O amigo se prepare que vai ser Papa”. Seria o segundo nascido em Portugal. Depois de João XXI, mais conhecido como Pedro Hispano, em 1276. Ele achou graça.
O tempo dirá se acertei.