Viagem Caleidoscópica. Por Aylê-Salassié F. Quintão*
VIAGEM CALEIDOSCÓPICA
AYLÊ-SALASSIÊ QUINTÃO
…Não fiz matéria sobre o inusitado encontro. Jornalista de economia e finanças, não escrevia sobre trivialidades. Tarde conclui que vacilara. Seria a primeira e exclusiva entrevista de um Beatle para o Brasil. Ele estava ali disponível, e a Linda cuidava disso. Escondi a história. Não contei para o meu editor, receoso de ser repreendido…
O uso de alucinógenos, sobretudo o ácido lisérgico (LSD), começava a se difundir entre aquela geração de adolescentes. Havia uma frustração no ar. A era dos baby boomers – jovens ricos surgidos do pós-guerra – estava no final. A Guerra Fria e as viagens espaciais no auge. No Vietnam morriam milhares de jovens soldados. Os indianos, com seus gurus instalados em Rishikesh, ofereciam alternativas para as incertezas: o Beatle George Harrison, amigo de Maharishi, logo aderiu à opção. Tornava-se assim a juventude ocidental presa fácil das drogas, que ofereciam viagens infinitas pela imaginação, ao provocar desordens psíquicas.
Picture yourself in a boat on a river/ With tangerine trees and marmelade skies/Somebody calls you; you answer quite slowly/A girl with kaleidoscope eyes.
Este é o primeiro verso de Lucy in the sky with Diamonds, uma “viagem” caleidoscópica dos olhos e da mente. Inesquecível. A seguir vinha She’s leaving home – a adolescente deixa a casa dos pais em busca da liberdade; Sargent Pepper’s – o primeiro militar a fumar maconha dentro de um quartel. Hey, Jude, don’t be afraid – …não tenha medo. Enfim, uma série de letras agressivas, amenizadas por uma linguagem jovem, uma musicalidade delicada e uma harmonia inconfundível.
Why not? I’m an English citizen. Ele tinha uma casa em St John’s Wood, da zebra da Abbey Road. Surpreendera-me a falta de preocupação dele com a segurança. Ia dar a minha explicação, quando um grupo de franceses, descendo do mesmo trem, surgiu gritando: Voilá, c’est Paul McCartney!!!
Milhares de adolescentes viajavam para a Inglaterra para conhecer o Cavern Club, na Mathew Street, em Liverpool, onde os Beatles se reuniam. Surgiram dezenas de “bandas covers”. Algumas apresentaram-se ali, inclusive brasileiras, e também brasilienses.
Este texto é fruto de um encontro com McCartney, logo depois do assassinato, em Nova York, de John Lennon. Estava na Inglaterra como correspondente do Correio Braziliense e da Agência Anda. Residia, contudo, no Sul, em Ashford, no condado de Kent.
Nas vindas à Londres, desembarcava na estação de Charing Cross, no início da Strand, uma rua longa que vai dar no centro financeiro da City, onde trabalhava. O trem que passava pela minha cidade trazia para Dover, na costa britânica, passageiros embarcados no ferryboat em Calais, na França. Saía de Dover, e subia em direção a Londres, por Ashford e, depois, St. John, a uns dez minutos de Londres.
À minha frente, desembarcou, certo dia, um casal de mãos dadas com um menino de seus 10 anos. Tive um estranhamento. “Conheço este sujeito! Com o meu inglês macarrônico, arrisquei: “O que você está fazendo aqui na estação de Charing Cross?! Sorrindo, ele respondeu: Why not? I’m an English citizen. Ele tinha uma casa em St John’s Wood, da zebra da Abbey Road. Surpreendera-me a falta de preocupação dele com a segurança. Ia dar a minha explicação, quando um grupo de franceses, descendo do mesmo trem, surgiu gritando: Voilá, c’est Paul McCartney!!! C’est McCartney! Envolvendo-o, pediam autógrafos. Ele virou-se para mim, e disse:” Would you lend me your pen, please?”. “Claro”, respondi. “Mas, primeiro, assine aqui na minha caderneta de trabalho”. Ele o fez, e passou a atender aos franceses. Ali de lado, comecei a conversar com a Linda Eastman. Simpática, já sabendo que era do Brasil, me perguntou sobre os brasileiros e sobre a Amazônia, e ainda me deu uma dica: We had never been to Brazil. Conversamos um pouco mais, e terminou por aí. Paul devolveu a caneta, e os dois prosseguiram. Iam levar Heather para passear na Trafalgar Square, logo na frente.
Não fiz matéria sobre o inusitado encontro. Jornalista de economia e finanças, não escrevia sobre trivialidades. Tarde conclui que vacilara. Seria a primeira e exclusiva entrevista de um Beatle para o Brasil. Ele estava ali disponível, e a Linda cuidava disso. Escondi a história. Não contei para o meu editor, receoso de ser repreendido. Do encontro, restou o autógrafo. Sempre recusei a fazer isso. Mas o de Paul, guardo-o ainda.
“McCartney solo” …. É quase impossível desconectar Paul McCartney dos Beatles na cabeça de uma geração que desembocaria na revolução estudantil de 1968 e no Festival de Música de Woodstock (EUA) de 1969. No Brasil, logo depois deles, surgiria a bossa nova, o movimento tropicalista e a luta armada. Dez anos depois, ele desceria no Rio de Janeiro para sua primeira apresentação no Brasil. Assistira-o cantando nos jardins do Palácio de Buckingham. Hey Jude! Dont´t be afraid! Don´t carry the world upon your shoulders. Hey Jude!… Linda, a alma daquela união, faleceria logo em seguida. Como grupo, os Beatles não existiam mais. Apesar da separação definitiva, mesmo “solos”, o imaginário da minha geração nunca os separou.
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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília