“Seja marginal, seja herói!” Por Aylê-Salassié F. Quintão

“SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI!”

Aylê-Salassié F. Quintão*

… a marginália de que se fala agora é também uma ruptura, mas amparada levianamente em valores políticos preconizadas pelo filósofo italiano Antonio Gramsci. A perspectiva revolucionária, sofreu profundos desvios, tornando-se sinônimo de transgressões em rede entre políticos e empresários, que passaram a desafiar os costumes e a lei…

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A menos que sejamos todos marginais, pergunto: Que interesse público justifica o cerco ao juiz Sergio Moro, vagarosamente transformado no maior vilão da História do Brasil desde que os colonizadores se foram? Por meio de uma ação transgressora coordenada, a “marginália” tenta desqualificá-lo, envolvendo inclusive o Supremo Tribunal Federal. Espera-se com isso anular sentenças e condenações à prisão, proferidas contra políticos e empresários acusados de assaltos aos cofres públicos. Mas, não é só isso…

A “marginália”, variável ativa do tropicalismo, nas décadas de 70 e 80, ganhou forma misturando a música popular nordestina de raiz com o espírito irrequieto e crítico de artistas como Bob Dylan e Jimmi Hendrix. Introduziu elementos novos para a discussão da carcomida cultura brasileira. “Seja marginal, seja herói”. Foi o artista plástico brasileiro Hélio Oiticica que deu a partida para a sua institucionalização.

Contudo, a marginália de que se fala agora é também uma ruptura, mas amparada levianamente em valores políticos preconizadas pelo filósofo italiano Antonio Gramsci. A perspectiva revolucionária, sofreu profundos desvios, tornando-se sinônimo de transgressões em rede entre políticos e empresários, que passaram a desafiar os costumes e a lei, num esforço extremo para desmoralizar instituições, fragilizar o Estado Nacional e apropriar-se privadamente do bem público.

Sergio Moro foi o sujeito, o juiz que apareceu subitamente no meio do mar de omissos do Judiciário, encarando corajosamente as práticas corrosivas, representadas pela corrupção, desvio de dinheiro público e lavagem de dinheiro. A reação em cadeia foi imediata, procurando transformá-lo de herói – mortal divinizado que desmonta quadrilhas e protege a população – em criminoso vil, acusando-o de não respeitar as formalidades dos ritos jurídicos convenientes.

A categoria dos advogados, secundados da OAB, faz a festa com as situações paradoxais, que ela mesmo desenha. Cada caso requer, pelo menos, dois deles. Alguns contratam equipes de advogados. Em 1.800 casos correndo na Lava Jato transitam por eles um mínimo de 3.600 advogados. É bem provável que a remuneração seja gerada dos recursos públicos desviados, e ainda não revelados. Só em Brasília existem 30 mil advogados, a maioria desempregada.

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O cenário é de uma conspiração. A “marginália” pede até a destituição de Moro do ministério da Justiça. A imprensa publica notícias sem fonte, e lê na TV longos libelos, originários do baú da transgressão, contra o Juiz, os procuradores e a Polícia Federal. Mídia e agencias de lobby parecem sócias nos saldos do dinheiro podre. A operação Lava Jato recuperou R$ 3, 5 bilhões, mas os desvios estimados superam os R$ 100 bilhões.

No meio jurídico, todos temem a gestão de Moro na Justiça ou a sua indicação para o Supremo Tribunal Federal. Os pretensos candidatos à eleição para Presidente da República em 2.022 também temem que a sua aceitação pública ampla o leve à uma candidatura popular. Nessa raia correm alguns políticos, entre os quais os atuais Presidente da República e o da Câmara Federal. Mesmo sendo um cidadão centrado e tranquilo, Moro deixou escapar, nos depoimentos no Congresso, que outros políticos, alguns em pleno exercício dos mandatos, estariam para serem julgados na Lava Jato por crimes similares. Assustou muita gente, inclusive aliados do Governo.

A pressão sobre Moro não se estende aos outros ministros, nem mesmo ao da Fazenda. Já se sabe que Moro é a chave, até para um imaginário impeachment. Começa a ficar difícil nas ações contra o governo distinguir entre o crime político e o crime comum. Há um esforço profissionalizado no sentido da reapropriação do Poder, aproveitando-se da oportunidade de o País ser governado por um Presidente altamente dispersivo, centrado nos interesses familiares.

Fala-se em democracia, mas o homem está lá por eleição direta, e teria de ser digerido, mesmo querendo nomear o filho embaixador do Brasil em Washington. Mexer no nepotismo balançaria o Legislativo e, sobretudo, o Judiciário. Não foi Bolsonaro também que inaugurou o Febeapá (Festival de Besteiras). A exaltação exagerada ou a desqualificação das virtudes nacionais tem algum tempo, e até ideólogos. Há 40 anos, Gilberto Gil, em plena “marginália”, assumiu que éramos todos culpados pelo país que temos:

Eu, brasileiro, confesso /Minha culpa, meu pecado/Meu sonho desesperado/Meu bem guardado segredo/ Minha aflição[…] Aqui é o fim do mundo.

Mesmo que Gil não mais assuma essas coisas, “scripta manent”. Moro é um aborto no meio disso tudo, ao pregar a moralidade e a ética, num País onde grassa historicamente a transgressão. Moro é o homem que tem a chave na mão, aquele que conseguiu quebrar o código de honra (Omertà) da criminalidade política. Nessa altura, mesmo que venha a ser transformado em bandido pelos transgressores que o perseguem, não dá para ignorar a advertência de Eric Hobsbawn de que vilões quase sempre tornam-se heróis populares.

Alguns vão parar na cadeia, também é verdade.

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Aylê-Salassié F. Quintão*Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília.

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