O Poder moderador e semipresidencialismo. Por Manoel Gonçalves Ferreira Fº (2)
…Com muita frequência tem vindo a debate a questão da existência de um Poder Moderador na República brasileira. A discussão, entretanto, raramente aprofunda o aspecto jurídico e constitucional da questão.
Do ângulo constitucional, o Poder Moderador tem contornos claros e doutrinariamente bem conhecidos. Este Poder é um quarto Poder que deveria ser acrescentado aos três Poderes da doutrina clássica de Montesquieu – a separação dos poderes. Trata-se de ideia bem conhecida que foi incorporado ao direito positivo brasileiro na Constituição do Império.
A necessidade desse quarto Poder foi apontada por Benjamin Constant de Rebecque, suíço que militou na política francesa na transição do século XVIII para o XIX. Num texto de 1815 ele textualmente observa:
“O poder executivo, o poder legislativo e o poder judiciário são três molas (ressorts) que devem cooperar, cada um de sua parte, para o movimento geral: mas quando as molas desajustas (dérangés) se cruzam, se entrechocam e se paralisam, é preciso uma força que os reponha no seu lugar.[1]”
E acrescenta:
“Esta força não podem estar numa das molas, pois ela lhe serviria para destruir as outras. É preciso que ela esteja fora deles, que ela seja neutra, de algum modo, para que sua ação se aplique necessariamente em toda parte em que for necessário que ela seja aplicada e para que ela seja reservadora, reparadora, sem ser hostil”.
Tal quarto poder – “neutro”, ajunta – caberia à pessoa do chefe de Estado. “O interesse verdadeiro deste não é o de que um dos poderes derrube o outro, mas que todos se apoiem, se ouçam e ajam de concerto”.
Sob a designação de Poder Moderador, a ideia se concretizou no Brasil na Carta de 1824. Está enunciada no art. 68 da mesma que vale transcrever:
“O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da Nação e seu primeiro representante para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos poderes políticos”.
Foi ele exercido, durante o Segundo Império, como instrumento da influência do D. Pedro II na condução dos negócios públicos. A ele, a maioria dos historiadores atribui os méritos do governo imperial.
A República o eliminou do sistema constitucional, adotando o sistema presidencial de governo. Neste, coexistem apenas os três Poderes “clássicos”, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que devem ser “independentes e harmônicos entre si”, conforme preceitua a Constituição brasileira em vigor no art. 2º.
Ora, como o chefe do Executivo é também o chefe de Estado, não existe um poder neutro, para arbitrar conflitos em que o Executivo eventualmente esteja em colisão com qualquer dos outros poderes.
Assim o direito constitucional da República desprezou a existência de um Poder que solucionasse eventuais conflitos entre os três ou entre dois dos três Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário. E isto foi muitas vezes lamentado por juristas e políticos, chegando-se até há uns cinquenta anos atrás a se discutir como reintroduzi-lo no Brasil, obviamente sem sucesso. Lamentavelmente.
Na verdade – reconheça-se – a existência de um Poder Moderador não está explícita em nenhuma das Constituições vigentes pelo mundo afora.
Está, todavia, sem o nome, na Constituição francesa de 1958, uma Constituição semipresidencialista, como decorre do seu art. 1º, primeira parte:
“O Presidente da República vela (veille) pelo respeito à Constituição. Ele assegura, por sua arbitragem, o funcionamento regular dos Poderes públicos bem como pela continuidade do Estado”.
Tenha-se presente que, nessa Constituição – o modelo do semipresidencialismo – o Presidente da República é Chefe de Estado, mas não é Chefe do Governo – o “Executivo”.
Analisando esse dispositivo, Maurice Duverger sublinha essa função de poder moderador atribuída ao Presidente da República, chefe de Estado, assim como registra o vínculo entre isto e o disposto na Constituição imperial.[2]
Ora, claro está que o Poder Moderador não está na Constituição de 1988, que não prevê um quarto Poder. Tal ausência, todavia, mas pode vir a existir com a adoção do semipresidencialismo que hoje se debate. É, na realidade, um dos méritos deste sistema de governo.
Assim, evitar-se-ia que situações conflituosas e graves de difícil solução possam levar a ações – sociologicamente falando – de caráter moderador, mas cujo preço é a quebra da ordem constitucional. Em nossa história republicana não faltam exemplos disto.
Leia também: A ALTERNATIVA SEMIPRESIDENCIALISTA
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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( 19 de agosto de 2021)
[1] V. Principes de politique applicables à tous les gouvernements représentatifs, 1815, livro hoje inscrito em Oeuvres de Benjamin Constant, La Pléiade, Paris, NRF, 157, p. 1172 e se.
[2] Cf. La Cinquième République, PUF, Paris, 2ª ed., 1960, p. 177.