blecaute

O blecaute e a sirene. Por Meraldo Zisman

                                                                                   …  RECORDAÇÕES DA INFÂNCIA…              

blecaute
                                                             
Blecaute é o procedimento para deixar tudo às escuras, como precaução contra-ataques aéreos. Pelo jeito, por falta de chuvas, reviveremos blecaute da Segunda Guerra, quando todas as luzes eram apagadas para dificultar ataques alemães. Há 70 anos os nazistas capitulavam oficialmente, dando fim à Segunda Guerra Mundial na Europa. Aquele 7 de maio de 1945 trouxe um alívio também em Pernambuco. Apesar de longe dos palcos de conflitos na África, na Europa e no Sudeste Asiático, o Estado viveu intensamente o conflito e agora me faz recordar a minha infância e juventude na Praça Maciel Pinheiro onde os prestamistas judeus costumavam se reunir à tardinha.

Vamos às minhas reminiscências. Corria o ano de 1942. Eu era um escolar e morava na minha Rua da Alegria. Vivíamos normalmente e a não ser pelas notícias do Repórter Esso, a testemunha ocular da história, de Guerra Mundial pouco se comentava entre os componentes da minha turma. Estávamos mais interessados em quem ganharia o próximo jogo, Náutico ou Sport. Sou torcedor deste último.

Os jornais viviam repletos de notícias sobre a II Guerra e o meu pai ficava até altas horas da noite ouvindo a rádio BBC de Londres. Material com o qual se nutria para discutir num acirramento, para mim incompreensível, com os seus patrícios o curso das batalhas travadas na frente europeia, ao findar da tarde, em iídiche sentados nos bancos de ferro da Praça Maciel Pinheiro. Tomada de Paris, queda de Sebastopol, retirada de Dunquerque. Tomada da Abissínia. O general Rommel, a raposa do deserto. Montgomery, com o seu boné. Invasão da Rússia, Normandia, sul da Itália. Patton, o audacioso general americano. As bombas voadoras sobre Londres. Pearl Harbor, fuga das tropas italianas, fuzilamento de Mussolini. Fortaleza voadora. Os aviões Zero japoneses. Os Pilotos suicidas. A real força aérea britânica e seus Spitfires. A imponência de Stálin, a fleuma, o charuto de Churchill, a fragilidade   física do Roosevelt na conferência de Yalta. A neve, o frio, a batalha de Stalingrado e depois em 1945 — o Carnaval da Vitória comemorado há mais de 70 anos. Está tudo registrado nas minhas lembranças.

Eu me sentia muito seguro. E se não fosse pelo entusiasmo do meu pai, pouco teria se me dado conta que, de Dakar para Recife eram apenas 6 horas de voo para que os bombardeiros da força aérea alemã, comandada pelo marechal do ar Göering, pulverizassem o meu Recife. Depois chegaram os americanos que mudaram os hábitos do Recife. Cassino americano. Moça que passasse a usar óculos RayBan era moça falada. “Calunga filho de americano era o mesmo que filha da puta”. Nova gente, novos costumes, novas modas e novos comportamentos sexuais.

Chocolate americano, D.D.T. e penicilina. A estrada do chupa, hoje cais José Estelita. Navios de guerra, aos montes, no cais do porto. Aviões de caça e de bombardeio no Ibura (futuro aeroporto dos Guararapes). Cigarros  Chesterfield, Mallboro, Luquistraique, Palmol, Camel. Cada carteira de papel dos seus invólucros, papel de cédula de um maço de cigarro americano, valia 100 “cédulas” de cigarro Elmo ou Astória do nacional. E essa era a nossa moeda corrente na Campina da Rua da Alegria, nas apostas dos jogos de bola de gude ou nos dos piões.

Quem de nós iria adivinhar estarmos praticando o exercício de viver a inflação? Quanto, súbito, vejo chegar a verdade da guerra, através do blecaute do Recife. Não podíamos acender luzes à noite, tudo escuro, os carros trafegando com os faróis pintados de preto, falta de manteiga, carros movidos a gasogênio, ferro-velho e outras coletas patrióticas, as tropas da FEB embarcando, os navios brasileiros torpedeados. Os submarinos alemães.  O quebra-quebra da sorveteria do seu Gemba somente por ele ser japonês e da queima dos tecidos do armazém do Fortunato Russo, por ser italiano. E tudo tão diferente dos filmes de guerra ou dos filmes naturais da Fox, Movietone ou dos comentários em português brasileiro da BBC que eu assistia embevecido no cinema Politeama e no velho rádio de ondas-curtas Philips feito na Holanda de antes da Guerra.

Numa destas noites de blecaute, sai de casa para andar pela rua da Alegria. Estava toda apagada.  Portas e janelas fechadas e, nessa altura dei-me conta de que se os alemães chegassem ao Recife os meus amigos que não eram judeus não iriam sofrer nada enquanto eu, um judeu, estava condenado à morte. Deu-me um tremendo medo e pulei de susto quando a sirene do alarme geral tocou avisando que o ensaio de blecaute havia terminado.

Mas para mim, nunca!  A sirene do blecaute me avisa, por toda a vida, das minhas origens judaicas.        
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Meraldo Zisman Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Álvaro Ferraz.

 

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