The hole. Por José Horta Manzano
…The hole is further down (o buraco é mais embaixo)…
Primeiro, abro um parêntese. Aquilo que hoje se conhece como droga era chamado de entorpecente algumas décadas atrás. Droga era produto preparado por droguistas e vendido em drogaria, dentro de total legalidade. Cem anos atrás, quando a oferta de remédios de laboratório não era ampla como hoje, era costume o médico “dar a receita”, isto é, escrever num papel os ingredientes e o modo de preparar o medicamento. (Aliás, é por isso que se chama até hoje receita, exatamente como receita de bolo.)
Entregava-se à farmácia o papelzinho, fazia-se a encomenda e um droguista se encarregava de aviar a receita. Salvo caso de emergência, ficava pronta no dia seguinte. Repare que na polícia, até hoje, o departamento que cuida de heroína, cocaína, crack e outros bichos é o Setor de Entorpecentes, nunca um hipotético Setor de Drogas. Vamos fechar o parêntese.
No mundo todo, a todo momento, tem gente se esquivando da própria responsabilidade. É o policial que, após despachar o bandido para o outro mundo, explica que o fora-da-lei atirou primeiro e que ele, policial, só revidou em legítima defesa. É o estuprador que explica que só fez o que fez porque a moça, que era um demônio de saias, atiçou seus baixos instintos e deixou-o impossibilitado de resistir. É o aluno que, apanhado em flagrante quando ‘colava’ a prova do coleguinha da frente, informa que só fez isso porque, tendo o colega se ausentado pra fazer pipi e deixado o papel à vista, foi impossível desviar o olhar. Tratou-se de “cola involuntária”.
Estes dias, as manchetes da França deram, com destaque, a notícia de um adolescente de 14 anos que foi assassinado com uma rajada de metralhadora Kalachnikov. A investigação demonstrou que o jovem estava cumprindo sua missão de vigiar um ponto de venda de droga, à entrada de um conjunto habitacional da periferia de Marselha. Numa briga de gangues, dois desconhecidos encapuzados chegaram de moto, o infeliz acabou levando o tiro, enquanto o resto do bando escapou. E os assassinos fugiram na mesma moto em que tinham vindo.
Dia seguinte, o comentário do prefeito de Marselha foi lapidar. Lamentou-se ele de que “nesta cidade, compra-se uma metralhadora Kalachnikov com a mesma facilidade com que se compra um pãozinho de padaria”. (O “pãozinho de padaria” é invenção minha; no original, é “un petit pain au chocolat – um pãozinho de chocolate”, especialidade ultrapopular, apreciada por grandes e pequenos. Mas o efeito é o mesmo.)
Taí um desavergonhado exemplo de alguém que procura se desvencilhar da própria culpa. Em Marselha, como em qualquer lugar do mundo, os pontos de droga são pra lá de conhecidos das autoridades municipais. Se continuam funcionando, é porque têm permissão tácita para fazê-lo.
Quanto ao acerto de contas entre gangues rivais, a culpada não é a Kalachnikov, a arma do crime. O problema não vem da facilidade de aquisição da metralhadora preferida por 11 de cada 10 terroristas. Se fosse difícil comprá-la, qualquer outra arma teria servido: arco e flecha, coquetel Molotov, foice, tacape ou até um modesto bodoque. Se o adolescente morreu, a culpa certamente não é da arma.
The hole is further down (o buraco é mais embaixo).
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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O que, penso eu, de forma alguma autoriza nosso ogro preferido (para uma longa estadia no inferno) a incentivar e facilitar o comércio desses ‘ferros’ por aqui.