A estatal que é privada. Coluna Carlos Brickmann

A ESTATAL QUE É PRIVADA

COLUNA CARLOS BRICKMANN

EDIÇÃO DOS JORNAIS DE QUARTA-FEIRA, 5 DE JUNHO DE 2019

A cena foi memorável: o presidente Fernando Henrique Cardoso vendeu em leilão uma das estatais-símbolo do país, a Cia. Vale do Rio Doce, por uns dois bilhões e pouco de dólares. O cheque foi ampliado e exibido à vontade – era o início da privatização. Bom, houve uma ou outra privatização, mas o país é ainda um dos campeões do mundo em estatais. E a própria Vale, a privada, tem hoje maioria de capital controlado pelos governantes, além da golden share imposta por Fernando Henrique. É uma única ação, mas dá ao acionista, o Governo, amplo poder de veto sobre as atividades da empresa.

Com a maioria do capital controlada por fundos sob influência oficial, o Governo poderia ter exigido que a Vale não funcionasse como privada na manutenção das barragens e na proteção das populações que viviam no caminho das águas e dos rejeitos em caso de acidente. Também poderia ter poupado o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, o Previ, das perdas bilionárias que vem sofrendo (e que atingem diretamente os funcionários do banco, já que são eles que pagam a suplementação de aposentadoria). Brumadinho, primeira tragédia da Vale, derrubou o valor da empresa. O Previ, hoje o maior acionista individual da Vale, teve no primeiro trimestre deste ano resultados R$ 5,8 bilhões abaixo do previsto. Tudo para fingir que, embora oficialmente uma empresa privada, a Vale continuasse estatal por debaixo do pano. E estatização, claro, com o dinheiro dos outros.

Cadê o foco?

O superministro da Fazenda, Paulo Guedes, disse no Congresso, mais uma vez, que o país quebra rapidamente se não houver uma reforma drástica da Previdência (sua meta é de R$ 1,2 trilhão de economia em dez anos, mas talvez se contente com um pouco menos). O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fala em reforma que poupe R$ 1,1 trilhão em dez anos. No momento, não há votos suficientes para aprovar uma reforma deste porte – embora seja possível que se alcance a maioria necessária. Mas, com essa catástrofe anunciada, que é que faz com que o presidente vá ao Congresso? Não, não é a reforma da Previdência, nem a reforma tributária: é uma mudança nos dispositivos de trânsito, passando a tolerância das carteiras de habilitação de 20 pontos (momento em que, agora, supostamente devem ser cassadas) para 40 pontos. O objetivo é agradar os caminhoneiros, que agora poderão cometer o dobro de ilegalidades e mesmo assim manter a habilitação em dia. Tomar essa medida exige a intervenção do presidente? Até hoje, nunca exigiu. Tudo foi decidido pelos órgãos técnicos. Agora o que vale é mostrar aos eleitores o favor que lhes está sendo oferecido por ordem do presidente.

Cadê a segurança?

Duplicar o número aceitável de pontos na carteira de habilitação é bom para os caminhoneiros? Depende: a categoria terá mais liberdade para dirigir como quiser, com o fantasma da cassação da carteira bem mais longe. Mas, em compensação, correrão maior risco na estrada, já que outros motoristas também se sentirão livres para prestar menos atenção à segurança.

Mas o presidente também não parece se preocupar muito com esse tema. Embora a monitoração eletrônica do trânsito nas rodovias federais tenha contribuído comprovadamente para reduzir o número de mortos e feridos em acidentes, Bolsonaro insiste em se opor ao aumento da fiscalização. Alega que “é preciso trazer de volta o prazer de dirigir”. Haverá maior prazer de dirigir do que concluir a viagem são e salvo, sem precisar gastar em hospital e oficina?

Boa notícia

O deputado Pedro Cunha Lima, tucano da Paraíba, está formulando uma proposta de emenda constitucional que se chamará PEC dos Penduricalhos. A ideia é gastar menos com o custeio da máquina administrativa. Hoje, até mesmo o parlamentar que se reelege recebe um penduricalho para custear a mudança para Brasília, outro penduricalho para morar lá (mesmo que já more em casa própria e até tenha outras propriedades), mais um penduricalho para comprar roupas, fora mordomias como carro, combustível, motoristas e assessores (há pelo menos um parlamentar com 70 assessores). A PEC dos Penduricalhos já tem 64 assinaturas garantidas, das 171 necessárias.

Inclusão!

Seria bom se isso valesse também para outros poderes, todos carregados de mordomias e auxílios diversos para fazer aquilo que o cidadão, que ganha menos, tem de fazer com seu próprio dinheiro. Nos EUA, o presidente paga as refeições da família na Casa Branca – excetuam-se aquelas em que há uma reunião de trabalho. E, na Suprema Corte, há um só carro de representação, o do presidente. Os outros ministros, se quiserem carro, que o comprem.

Armas impopulares

A pesquisa é do Ibope: 73% dos entrevistados são contrários ao porte de armas e rejeitam as medidas que facilitam as compras de armamento. Armas em casa são menos impopulares, mas também mal aceitas: 61% são contra.

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1 thought on “A estatal que é privada. Coluna Carlos Brickmann

  1. “É preciso trazer de volta o prazer de dirigir”, proclama o energúmeno, no comando neste cemitério maldito em que o Brasil se transformou exatamente por matar, nas vias públicas, num único dia, mais do que o trânsito do Canadá mata num ano. Alguém precisa dizer a esse cretino que, mesmo no dicionário (que, por certo, ele desconhece), a vida vem antes do voto, e o bom-senso, antes do populismo. ‘Desburocratizar’, ‘racionalizar’, ‘acabar com a indústria da multa’, ‘prazer de dirigir’, etc., etc.; seja lá qual for a boçalidade que o capitão vomite para justificar seu desejo de piorar o que já é um horror, o fato é que o aumento do número de maus motoristas à solta (é o que seu projeto almeja) só poderá ter por consequência mais mortes, mutilações, incapacitações, amputações, além de prejuízos públicos e privados de todas as espécies, aí inclusos os danos materiais cujos reparos as administrações municipais, estaduais e federal terão de assumir. Postes arrancados do chão, por exemplo. Fora o resto. Será que o energúmeno sabe quanto as fraturas ósseas multiplicadas por esse projeto custarão ao SUS? Será que ele sabe quanto custam à economia do país os dias, as semanas, os meses de trabalho perdido porque as pessoas que o executariam se encontram acamadas, incapacitadas, aleijadas, internadas, algumas em coma permanente – ou simplesmente mortas? Será que ele sabe, ou faz alguma ideia do que significa a perda pessoal daqueles familiares que choram à beira dos túmulos? Será que ele sabe algo a respeito de alguma coisa, afinal? Será que esse cretino com traços de psicopatologia antissocial sabe qualquer coisa além desse seu desejo doentio de destruir o pouquíssimo de civilidade que nos resta? Armas em profusão são pouco! Carros também! Eles, afinal, também servem para matar! O que tem dentro do crânio um sujeito que propõe – e o faz pessoalmente, para mostrar seu orgulho em fazê-lo – algo que só pode piorar o que já temos de pior, de mais selvagem, de mais bárbaro? “É preciso trazer de volta o prazer de dirigir”, proclama o estúpido. Não, capitão; você mais uma vez está errado! Devolva-nos o prazer da vida civilizada, do trabalho de carteira assinada, da economia que cresce, da política sem toma-dá-cá, da inteligência na administração pública, da vida cotidiana desarmada e sem violência; devolva-nos um país – ainda um país – antes de fechar a porta e dar o fora, seu idiota!
    E, por favor, faça-o o mais cedo possível.

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