Sunset silhouette of a lonely girl

A palavra Saudade ou Hanim do Amor Perdido. Por Josué Machado

A PALAVRA SAUDADE

ou

HANIM DO AMOR PERDIDO

JOSUÉ MACHADO

…E claro que o vocábulo “saudade” com as sete letras que o formam nessa disposição específica só existe na língua portuguesa. O que ele tentou dizer é que não há, em outra língua, palavra de significado igual ao de saudade…

Saudade é sentimento expresso apenas na língua portuguesa. Eis aí uma afirmação ouvida frequentemente, até de estudiosos de literatura e do idioma. Noção mais ou menos confirmada agora pelo documentário “Saudade: muitas saudades”, em exibição no canal de TV Arte 1.

Isso significa que brasileiros e falantes de outras ex-colônias portuguesas foram abençoados pelo bom Deus com a melhor saudade do mundo? A melhor, não — a única saudade. Será?

Pois saudade, bela palavra pela delicadeza de seu significado algo melancólico, parece ter vindo do latim solitatem (de solitas, solitatis), que significa solidão, retiro, isolamento. Das formas arcaicas “soedade”, “soydade”, “soidade” e “suidade”, teria passado a “saudade”, talvez por influência cruzada de saudar ou saúde.

 Ao escrever sobre o tema, um colunista de jornal afirmou que “(…) saudade, existente somente na língua portuguesa (…)”. Repetia autores conceituados, mas distraídos.

Saudade é recordação nostálgica de pessoas ou coisas distantes, de pessoas ou coisas extintas, acompanhada da vontade de revê-las e tê-las de volta; desejo de um bem que se perdeu, ainda que provisoriamente. É um sentimento de amor e de ausência marcado por delicado toque de melancolia. E obviamente universal.

E claro que o vocábulo “saudade” com as sete letras que o formam nessa disposição específica só existe na língua portuguesa. O que ele tentou dizer é que não há, em outra língua, palavra de significado igual ao de saudade.

Um engano.

Como não há sinônimos perfeitos na mesma língua, a não ser em alguns casos, talvez seja possível concluir, por isso, que não há em línguas diferentes palavras de perfeita equivalência para nominar certos sentimentos e emoções. Haveria pelo menos matizes que as diferenciassem umas das outras. Seria o caso, quem sabe, de saudade — sentimento que em outras línguas talvez não seja expresso por palavras de ocorrência e versatilidade semelhante e, sobretudo, de tão abrangente e suave carga semântica. Em suma, saudade teria significado mais rico do que o de palavras que designam o mesmo sentimento de perda em outras línguas.

Pode ser. No entanto, o professor José Marques da Cruz (1888-1958), informou em seu “Português Prático” que os russos têm a palavra “toscá” com o mesmo sentido. Em alemão, há “Sehnsucht“; em árabe, “shauck“; em armênio, “garod“; em iugoslavo, “jal“; em letônio, “ilgas“; em japonês, “natsukashi“; em macedônio, “nedôstatok“; em galês, hiraeth; em bretão, hiraezh.

E no latim, falecido, mas não tanto, há “desiderium”.

Por que, então, brasileiros, portugueses e habitantes de ex-colônias portuguesas, povos já tão abençoados por Deus, tão bem-governados –- é só ver o Brasil —  teriam o privilégio de apenas eles sentir saudades?

Saudade é recordação nostálgica de pessoas ou coisas distantes, de pessoas ou coisas extintas, acompanhada da vontade de revê-las e tê-las de volta; desejo de um bem que se perdeu, ainda que provisoriamente. É um sentimento de amor e de ausência marcado por delicado toque de melancolia. E obviamente universal.

A filóloga portuguesa Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925), nascida na Alemanha, já tinha definido em “A Saudade Portuguesa”:

Plena concordância há … entre Saudade e a Sehnsucht dos alemães… Em ambas elas vibra maviosamente a mágoa complexa da saudade, a lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, e de só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade.”

Em seu “Questões de Português” (Editora Saraiva), o professor Silveira Bueno (1898-1989) anotou o vocábulo húngaro “sóvárgás” e lembrou que o francês pode usar “regret”, e o italiano, “nostalgia”, para exprimir o sentimento da saudade.  Napoleão Mendes de Almeida (1911-1988) registra em seu “Dicionário de Questões vernáculas”  (Editora Caminho Suave) duas palavras árabes equivalentes a saudade: o aportuguesado “chauque”, de “shauck”, e “hanim”, palavra onomatopaica. Hanim, escreveu ele, “reproduz a voz da camela que ao chegar ao destino volta a cabeça na direção do lugar em que deixou o filho e expressa com um ‘hanim’ alto, longo e sentido, o pesar do afastamento”.

“Hanim!, hanim!”, temos vontade de balir alto, longa e lamentosamente, como a camelona saudosa, a cada governo que termina, depois de cumprir todas as promessas e pagar todas as dívidas sociais.

Como eram bons os tempos de esperanças!

Que saudades!

Hanim!

……….

(Do livro “Língua sem vergonha”, deste escriba, Civilização Brasileira, 2011.)
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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade

 

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