Meu pai (Jacob da Balalaica). Por Meraldo Zisman
…De corpo triangular, era uma “balalaica”, instrumento musical de cordas, símbolo da música popular russa. Tudo aconteceu nas adjacências da Praça Alfredo Lisboa onde os paquetes velozes e luxuosos aportavam vindos do Velho Mundo…
Dizem, os que acreditam na quiromancia ou nos dotes mentais de certas pessoas de vaticinarem o futuro, serem certos fatos manifestações da paranormalidade. A vida tem me ensinado prudência ao emitir ideias, mormente ao se tratar de questões polêmicas. Acredito que existem, na vida terrena, fenômenos e acontecimentos inexplicáveis! Essa história que desejo contar, apesar de tratar mais de música e sentimento filial que de crenças, penso ser de serventia e servir de medida cautelar para este mortal escrevinhador.
O meu falecido pai era judeu-russo. Imigrante de muitos saberes e pouco dinheiro. Rico de inteligência e cultura. Pessoa muito sensível e de fácil amizade. Não afirmo isso por ser seu filho. Não. Essa era a opinião da maioria de seus contemporâneos. Como sou médico, achei pertinente citar, à guisa de preâmbulo, um trecho emprestado do poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765 – 1805). Relembro. Foi o mais importante poeta português do século XVIII. Um velho caiu na cama: tinha um filho Esculapino, que para adivinhações gabava-se de ter bom tino. O pulso paterno apalpou, e receitar depois. Diz-lhe o velho suspirando — Repara que sou teu pai!
O meu pai atendia pelo nome de Jacob Zisman. Desembarcado em terras pernambucanas com a idade de 16 anos. Trazia numa das mãos uma mochila com os seus parcos pertences. Na outra, carregava, com o máximo cuidado e carinho, uma caixa de papelão, imitando couro, de um preto desbotado. Parecia uma caixa de carregar violão, porém terminava triangular. Despertou a atenção da Polícia Portuária. Meu pai e a sua estranha embalagem foram enquadrados no rol dos imigrantes suspeitos. A autoridade presente ordenou abrir o estranho volume, em pleno calçamento do cais do porto. Bem longe de todos. Quem garantiria não ser aquele estranho objeto uma bomba disfarçada?
O recém-desembarcado e a polícia se comunicavam por mímica, vez que, entre os idiomas neolatinos, o aportado só entendia mesmo algo de romeno. Meu pai nasceu na Bessarábia, território historicamente muito disputado tanto pela Rússia como pela Romênia; seus habitantes trocavam de nacionalidade com tanta frequência que o meu avô paterno resolveu alfabetizar o filho em ambas as línguas. Aberta a tampa do misterioso caixão foi avistado, repousando em decúbito ventral na sua caixa almofadada, uma espécie de violão. De corpo triangular, era uma “balalaica”, instrumento musical de cordas, símbolo da música popular russa. Tudo aconteceu nas adjacências da Praça Alfredo Lisboa onde os paquetes velozes e luxuosos aportavam vindos do Velho Mundo.
Meu pai, vestido de grossa casimira escura, e sua caixa da balalaica aberta no cais do porto, debaixo de um sol de rachar… Calor e medo. Foi obrigado a tocar, diante dos curiosos e policiais presentes, aquele estranho bandolim. Escolheu, por acaso, a música denominada de “Oci-ciornie” (“Olhos Negros”). Embeveceu a todos e saudou com sentimento a sua nova Pátria. A cultura eslavo-judaica de meu pai deu-se muito bem com a psicossociologia nordestina.
Afirmo isso com convicção. A preferência musical do meu pai e de sua balalaica foi gradativamente absorvendo o clima local. Passou a tocar as composições do Capiba, Nelson Ferreira, valsinhas dolentes do Zequinha de Abreu e, cada vez menos, canções inspiradas no cavalgar das troikas russas. Infelizmente o mesmo não posso dizer de sua saúde. O meu pai piorava cada vez mais dos nervos, apesar das amizades que aqui fez. Nunca conseguiu se adaptar à circunstância de trabalho imposta por sua condição de “judeu da prestação”. Não havendo doutor neuropsiquiatra para se consultar, a minha mãe, Anita, resolveu levá-lo a um Centro Espírita. O velho foi, debaixo de intenso protesto. A médium, segundo o espiritismo, a intermediária entre os vivos e mortos, invocando as forças do Além, pensou que o meu pai estava possuído por mais de 20 encostos. Hoje em dia, esse quadro de inadequação de uma pessoa a determinada modalidade de trabalho, seria diagnosticado como doença distímica, distúrbio grave da afetividade.
Meu pai era estrangeiro. Certos idiotismos, só brasileiros natos entendem. Ouvi-o, então, perguntar para minha mãe: — Anita, que danado é esse tal de encosto? — O encosto é a entidade que está ao lado de cada ser vivo. Para protegê-lo ou prejudicá-lo. Os seus encostos, Jacob, estão com o intuito de prejudicá-lo e completou: a catimbozeira disse que você estava com 29 encostos.
A médium aconselhou-o a tomar 20 seções de “passes”, oferendar 22 galinhas pretas, acender toda sexta-feira uma vela de 7 dias. Eu continuava à espreita, ouvindo tudo atrás da porta. Senti no ar a conhecida determinação materna. Despachou a minha mãe tudo o que a médium havia ordenado na “venda” do Seu Joaquim, comerciante luso que atendia a freguesia pelo sistema da caderneta de vender fiado. Era um dos sócios beneméritos do Centro Espiritual, onde meu pai havia se consultado. Atrás da porta, escutei a voz sorridente do meu pai dizer assim:— Não entendo muito desses tais de “encostos”, mas sei que, quando tomo um calmante, o meu nervosismo vai embora. E arrematou: — Aonde, danado vão os tais dos 29 encostos? Se você acredita naquilo Anita, pode voltar lá. Mas eu não. Veja você se os 99 encostos vão fugir com medo de uma pílula de calmante qualquer? Eta, encosto desmoralizado! E soltou, no final, uma das suas críticas e gostosas gargalhadas.
Posso agora contar tudo isso, pois, como ele já é falecido, não corro mais nenhum risco de ser processado através de alguma “entidade”. Das penalidades do céu, nem tanto. Depois de seu aportamento definitivo ao paraíso, o céu já se acostumou às suas irreverências. E, tocador de harpa no paraíso, aproveita o seu dom de “balalaiqueiro” pernambucano, reclinado em fofa e branca nuvem em forma de rede, presa em qualquer dobra do céu.
Quando se chega a certa idade, medos se acercam de nós. Dentre os meus, ressalto o medo da solidão. O dito do povo “antes só que mal acompanhado” não me serve de consolo. Gosto mesmo é de estar rodeado de gente. Isolamento é uma grande tristeza. Igualzinho ao pai, como dizem alguns de seus amigos, ainda vivos. Sinto é uma saudade grande dos seus conselhos. Da sua figura, da sua filosofia, de sua alegria contagiante, apesar da doença. De como sabia ser amigo. Do som da guitarra russa, através dele feito tão brasileiro. Tocadora não mais da romântica canção de sua terra de nascimento. Transmutada em tocadora do frevo Evocação, da romântica Valsa Verde de Nelson Ferreira, ao som da qual dancei, com minha mãe, a valsa da formatura no Clube Internacional do Recife.
Ecoa ainda no meu peito uma de suas máximas preferidas: “filho és, pai serás; como fizeres, assim receberás”. Obrigado, pai, por ter me permitido herdar um pouco de sua sensibilidade. Duvido muito que alguma criança nesse vasto Brasil tenha tido, como eu e meu irmão Fernando, o privilégio de viver uma infância musicada ao som do “Vassourinhas”, arrancado com muita maestria da “alma” triangular de uma balalaica trazida das longínquas e geladas estepes da Rússia.
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Meraldo Zisman – Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Álvaro Ferraz.