Injeções de lógica. Por Alexandre Schwartsman
INJEÇÕES DE LÓGICA
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
… a previdência, como existe hoje, ajuda a concentrar a renda, o que obviamente não impede os autodenominados campeões da desigualdade de defender aguerridamente o status quo. Não é a única instância em que isto ocorre…
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, Coluna do autor, edição de 16 de janeiro de 2019
Acontece todo ano e eu não deveria mais ficar aborrecido, mas ainda me irrito cada vez que os jornais voltam a afirmar que o pagamento do décimo terceiro salário irá “injetar X bilhões na economia”. Se fôssemos levar a sério, a imprensa teria que anunciar todo começo de mês que o pagamento dos salários “injetaria Y bilhões na economia”, porque, afinal de contas, não se trata de fenômeno distinto do que ocorre no final do ano.
Não é o caso (ainda bem!), porque o pagamento de salários não “injeta” nada: há uma troca entre os que trabalham e os que pagam o salário. No que se refere ao décimo terceiro há uma causação invertida: imagina-se que as vendas mais altas em dezembro decorrem do seu pagamento, quando se trata precisamente do inverso.
Vendas são mais altas no mês pelo efeito das festas de fim de ano. Neste contexto, o décimo terceiro nada mais é do que uma “poupança” disfarçada feita ao longo do ano: ao invés de distribuir seu salário anual em doze parcelas, o pagamento é feito em treze, das quais duas no final do ano.
Não seria muito diferente de poupar cerca de 7,7% de um salário mensal (pago em doze parcelas) e usar tais recursos no final do ano (com a vantagem, neste caso, de receber um pouco a mais de juros, ou poupar um pouco menos, contando com o pagamento de juros ao longo do caminho). Você prefere sua pizza dividida em oito ou seis pedaços?
Incorrem em equívoco similar os que, como o fracassado candidato a presidente e dublê de revolucionário, Guilherme Boulos, afirmam que a Previdência “injeta dinheiro na economia”. Boulos convenientemente esquece que, para pagar os benefícios, o governo tem que obter recursos em algum lugar, de contribuições (insuficientes), tributos, ou ainda por meio de endividamento adicional.
Ademais, este argumento tipicamente considera que tais recursos se destinam à camada mais pobre da população, o que está longe de ser verdade. Segundo estudo do ministério da Fazenda (https://tinyurl.com/yaqo7soa), pouco mais de 40% do gasto previdenciário é capturado pelos 20% mais ricos, ao contrário de programas mais bem focalizados, como o Bolsa-Família, que direciona 44% do seu desembolso para os 20% mais pobres.
Assim, enquanto as contribuições previdenciárias são moderadamente progressivas (isto é, quem ganha mais paga proporcionalmente mais), os benefícios são fortemente regressivos (quem ganha mais recebe proporcionalmente mais). Posto de outra forma, a previdência, como existe hoje, ajuda a concentrar a renda, o que obviamente não impede os autodenominados campeões da desigualdade de defender aguerridamente o status quo.
Não é a única instância em que isto ocorre. Como regra, se há algum arranjo que provoca distorções significativas e que tipicamente implica transferência de renda para os mais ricos, não há dúvida que keynesianos de quermesse, a versão macroeconômica dos campeões da desigualdade, estarão a postos para defendê-la e não se trata de exagero meu.
Subsídios do BNDES para grandes empresas? Sim. Proteção a segmentos privilegiados da indústria nacional? Sim. Meta de inflação mais elevada? Sim.
A falta de uma abordagem analítica rigorosa (oriunda da ojeriza à matemática) explica em parte este padrão; para entendê-lo plenamente, todavia, não há como ignorar a agenda política, que primeiro define as conclusões, para então passar aos argumentos que a justifiquem. E é sempre assim…
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