Fim de Ano. Por José Paulo Cavalcanti Filho
FIM DE ANO
Por José Paulo Cavalcanti Filho
Se ninguém envelhecesse
Eu não estava como estou
Velho, doente, acabado
Sem saber pra onde vou
Tudo que eu tinha na vida
Veio o tempo e carregou
Severino Pinto,
cantador de Monteiro, Paraíba.
Fim de ano é momento para refletir sobre o passado. Lembrando coisas boas. E perdas. É mesmo inevitável. Aqui, vênia para dizer que viver vale sempre a pena. Só que os homens se imaginam imortais. E acabam atropelados por suas próprias pressas. Porque essa tangibilidade é mais evidência racional, que percepção sensorial; mais ideia, que realidade; mais cérebro, que pele. E assim passa o tempo até que, um dia, compreendemos afinal que a vida é mesmo breve. Mas, então, quase sempre acaba sendo tarde.
Aqui, confesso que o momento em quem tenho mais perceptível o prazer imenso de viver é quando perco algum amigo querido – e isso tem acontecido, lamentavelmente, cada vez mais. Aqui, como na frase de Gide (em Os Moedeiros Falsos), peço: “Por favor não me compreendam tão depressa”. Porque essa aparente contradição entre sentimentos de perda e alegria só pode ser explicada em função do cenário em que tudo ocorre. E isso se dá, ao menos para mim, na alameda que vai da pequena capela do Cemitério de Santo Amaro, no Recife, até o portão de entrada que lhe fica em frente, a 200 metros. É que, depois de cada um desses enterros, invariavelmente me dirijo a essa capelinha. Para só depois caminhar, dali, até a rua. Um caminhar lento, e em tão profunda solidão, que sou capaz de ouvir meus próprios passos. Como se fossem os passos de outra pessoa. E, em certo sentido, são mesmo os passos de outra pessoa.
Capela e portão, claro, são apenas símbolos. Mas a diferença entre eles é grande. Enorme. A porta da capela está quase sempre fechada, o portão está sempre aberto. Atrás fica um homem morto, na cruz; em frente, homens e mulheres de carne e osso, vivendo suas bem-aventuranças e seus martírios. Atrás, apenas uma imagem de pureza e perfeição, em frente vendedores de amendoim, motoristas de táxi, curiosos, pedintes, o circo da realidade. Atrás a inscrição, na cruz, Jesus Nazarenus Rex Judaeorum; à frente, no portão, inscrição nenhuma. Mas, quando passo por lá, sempre me lembro, por alguma razão imprecisa, da porta do inferno, na Divina Comédia, onde se lê: Deixai Toda Esperança, vós que Entrais.
Nessa caminhada, de um lado e de outro, uma legião de mortos que um dia tiveram as mesmas esperanças e tristezas que hoje temos. Homens e mulheres como nós; cristãos, de todas as crenças ou ateus; mais velhos e mais novos; mais gordos e mais magros; mais ricos e mais pobres; brancos, negros, pardos e mulatos; de todos os gêneros. Democraticamente enterrados, lado a lado. Lembrando aos que passamos, com seu silêncio impotente, que o destino do homem é a igualdade. Olhando esses desconhecidos, sempre com muita pena (eu que nem os conhecia), fica para mim claro que o homem não nasce quando nasce, nem morre quando morre. Ele começa a nascer muito antes de se converter em feto, já firmando raízes nos locais onde andará, nos amigos que terá, quase como se o itinerário já estivesse previamente traçado. E ele morre, no enterro, apenas sua primeira morte. Para depois ir morrendo outras mortes, devagar, na memória dos amigos, em suas ideias, até que um dia desaparece de todas as lembranças para cumprir seu destino de ser, então completamente, apenas pó. Pensando nisso escrevi, à moda dos sonetos portugueses antigos, este
SONETO DA PARTIDA:
Se a vida é uma estrada para a morte
A morte é passaporte para a vida
E antes da chegada ou da partida
Nos cabe nesta vida azar ou sorte
Embora falte tempo para a morte
Também não sobra tempo para a vida
Porque desde o momento da partida
O tempo segue sempre a sua sorte
E nesse caminhar que é partida
E é também chegada para a morte
Sem nem saber o mapa dessa vida
Choramos sem sentir a triste sorte
Da morte que é somente o fim da vida
Da vida que é maior que a própria morte.
E me despeço dos amigos, nesse ano que finda, com votos de Bons Anos a todos.
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José Paulo Cavalcanti Filho – É advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.
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