Adeus, Agnaldo. Por José Paulo Cavalcanti Filho
ADEUS, AGNALDO
José Paulo Cavalcanti Filho
… Até quarta, iria se despedir de amigos e parentes. Quinta, mulher e filhos. Sexta de manhã, só a mulher. No começo da tarde, chegariam juiz, tabelião, o médico da família, enfermeiro. E às 16 horas, em sua cama, tomaria uma injeção. Não sentiria dor, assim lhe prometeram…
O telefone tocou, nesta segunda. Era o amigo Agnaldo Lyra, que ligava da Holanda.
– “Como vai?, Zé Paulo”.
– “Tudo bem, rapaz, o que há de novo?”.
– “Estou ligando para me despedir.
– “Como???”
– “É que vou fazer eutanásia na próxima sexta” (hoje, 2, Dia de Finados).
Foi como um murro na barriga. Desses de a gente ficar sem ar. Agnaldo é gente boa. Educadíssimo. E preto, bem preto, filho do negror da noite – em palavras com que Mário de Andrade definiu seu personagem Macunaíma. Fomos colegas de classe no Colégio Nóbrega. Um dia, sumiu da face da terra. Depois que traficantes mataram seu irmão branco (Agnaldo era adotado) e anunciaram que o próximo da lista seria ele. Soubemos de passagens suas por África e Portugal. Tudo vago. Até que apareceu já como cidadão holandês. E funcionário do governo. Casado com loura bem alta (mais do que ele) e dois filhos. Nos falávamos, sempre. E, desde algum tempo, convivia bem com um câncer.
Sugeri confiar na ciência. Lembrei mulher de conhecido jornalista da Globo (disse-lhe o nome), sem mais esperanças, que está se curando com tratamento à base de imunoterapia. Quem sabe poderia tentar algo assim. – “Meu caso é diferente. O câncer migrou do pulmão para o cérebro. Fomos a Paris para tentar esse tratamento e não era possível. Tem mais jeito, não”. Está reduzido, agora, a 51 quilos. E, a cada cinco dias, perde mais um. Começa a se esquecer das coisas. Por vezes, não controla partes do corpo. Cai no chão com frequência. Por tudo, a morte lhe parecia um fim lógico e digno.
Perguntei se a Holanda permitia isso. A resposta foi bem detalhada. O Juiz, antes de autorizar, ouve suas razões. Conversa com mulher, filhos, pessoas próximas. Pede opinião de médicos especialistas, para ter certeza de que a decisão não é movida por eventual depressão. Ou se haveria alguma solução na medicina. Depois descreveu, em minúcias, como seria. Até quarta, iria se despedir de amigos e parentes. Quinta, mulher e filhos. Sexta de manhã, só a mulher. No começo da tarde, chegariam juiz, tabelião, o médico da família, enfermeiro. E às 16 horas, em sua cama, tomaria uma injeção. Não sentiria dor, assim lhe prometeram.
Passou, então, a falar nos tempos do Nóbrega. De colegas e professores – José Walter, João Carlos, Eladinho, Manga Rosa, uma procissão de mortos. As brincadeiras na classe. Os apelidos. Parecia feliz, ao lembrar daquele tempo bom. Foi quando pediu para dar notícia do fato aos amigos daqui. O que estou fazendo, com esse texto. E nos despedimos. Ele, só com um “Adeus”. E eu, “Adeus, Agnaldo”. Após o que completei, mesmo sem acreditar no que disse, “em breve nos encontraremos em algum lugar”. Fim do telefonema.
Fiquei mudo. Estático. A morte é tão mais importante que todo o resto se relativiza. Eleições, viagens, projetos pessoais, nada parece ter importância. Tudo vai acontecer hoje, ao meio dia daqui (levando em conta o fuso horário). Maria Lectícia mandou rezar missa para ele. Lembrei versos de Pessoa (Álvaro de Campos, “Dois Excertos de Odes”): Vem, dolorosa/ Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes/ Sabor de água sobre os lábios dos cansados. Que essa mão fresca lhe adoce a partida, querido amigo. Fique em paz.
__________________
José Paulo Cavalcanti Filho – É advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.
jp@jpc.com.br