Nômades digitais. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
Trabalhando no mundo inteiro, sem se preocupar com Covid, CPI ou sucessão.
Os anos 60 do século passado foram marcados por uma intensa mobilização jovem pelo mundo. Entre eles apareceram os caroneiros e os mochileiros, assim chamados aqueles adolescentes, viajantes solitários, que cruzavam fronteiras nacionais, não necessariamente fazendo turismo ou buscando algo. A simples inquietação existencial os movia em diferentes direções, sem limite de tempo ou propósitos específicos.
Entre os ícones daquela juventude estava Ernesto Guevara de la Sierna, um jovem argentino, estudante de medicina que, antes de concluir o último semestre do curso, decidiu (junto com um amigo, Alberto Granato) fazer uma viagem pela América Latina, em uma velha motocicleta, que o(s) deixou no meio do caminho. Continuou a aventura pedindo carona. Foi parar no México. No sub mundo da capital mexicana, Guevara conheceu, um grupo de estudantes conspiradores cubanos. Terminou induzindo aqueles jovens revolucionários nacionalistas em direção ao socialismo, ao despertar neles o poder de transformação que carrega a juventude.
De lá para cá, aconteceu a revolução cubana, Guevara foi morto, o regime soviético, que dava sustentação ao grupo, desapareceu e o mundo se abriu para um estranho protagonismo: o das novas tecnologias eletrônicas, espaciais e digitais. Elas introduziam habilidades e habilitações desconhecidas, estimulando a criatividade, tornando instantâneas as comunicações, encurtando as distâncias e, em consequência, as diferenças culturais.
A onda motivadora da revolução digital abrigara-se, entretanto, na alma de uma geração que veio a ser chamada de nômades digitais: gostam de viajar à busca de aventuras e de conhecimento. Mas não são os mesmos mochileiros dos anos 60, nem os blogueiros cubanos rebelados. Essa é outra história. São jovens habilitados tecnologicamente, e que oferecem seu virtuosismo em trabalhos remotos. Itinerantes, estão em qualquer lugar, no Brasil ou no exterior. À caminho, prestam serviços à distância para empresas em Londres, em Johanesburgo ou em Pequim, muitas vezes, até sem sair de Gravataí (RS), Taubaté (SP) ou Pedra Branca (CE).
Como trabalhadores remotos são reconhecidos como influencers – que ajudam a a formar opiniões publicitárias, políticas ou profissionais – ou developers, que prestam serviços de administração, reestruturação e alimentação informativa para empresas no mundo todo, ao mesmo tempo em que estão se deslocando de um país, para o outro, de uma cidade para outra, não importando se estão em um hotel, em um parque, uma praia ou no meio da rua em Moscou ou em Alexandria.
O número cresce rapidamente. É um trabalhador do mundo, com ou sem carteira assinada, sem filiação partidária, sindical ou ideológica. Não faltam demandas, empregos nem salários. São muitos os exemplos de brasileiros já embarcados nessa onda. O Governo do Brasil tenta enquadrá-los. A reforma trabalhista no Brasil, Lei 13.467 /2017, tipificou a atividade nômade como teletrabalho que, quando prestado para empresas no exterior, é regulado como “contratos internacionais”. É muita areia para o meu caminhãozinho.
Embora alguns países já tomarem iniciativas similares, a insurgência do nômade digital tende a afetar a divisão social do trabalho, a organização sindical, as estruturas e currículos na educação, configurados pelos Conselhos de Educação. O aprendizado digital conduz uma pedagogia informal e uma cultura digital emponderadora de habilidades e de uma nova consciência social que, se não pode ser chamada de revolucionária – não parece ser o caso dos youtubers cubanos – , impregna, inevitável, o espírito sobretudo das novas gerações em direção a rupturas com o mundo analógico..
O nômade digital apareceu da fusão do jovem errante com aquele sujeito cheio de virtudes tecnológicas e até indisciplinado, que prefere trabalhar em casa(home office) ou à distância. Embora um aventureiro terrestre, ele ainda tem uma identidade de origem, mas digitalmente começa a desterritorializar-se. Reúne-se virtualmente com os patrões e companheiros em todo o mundo, pontualmente ou a qualquer hora, até mesmo para se divertir, sem nunca os ter conhecido pessoalmente.
Não buscam e não precisam de diploma, nem estão amarrados à tradicional divisão social do trabalho. Podem aprender, prestar serviços e resolver os próprios problemas, inclusive trabalhistas, remota e informalmente, sem nenhum registro, nem endereço. Seus objetivos não são propriamente a prestação de serviços, mas viajar, conhecer o mundo. Se vão influenciar, em algum momento, uma revolução social é imprevisível, mesmo porque a cultura digital nada tem a ver com as atitudes, atividades ou ideologias analógicas. O trânsito pelo mundo situa-se em outras esfera, para além das superestruturas dadas pela organização política e social dos Estados Nacionais.
Como se tornar um nômade digital, conhecendo o mundo, trabalhando remotamente? Aí recomendo ao interessado informar-se no endereço abaixo com o Neil Patel ( https://neilpatel.com/br/blog/nomades-digitais/).
Os nômades digitais estão numa boa, sem angústias, sem se preocupar com Covid, com a CPI ou com a sucessão presidencial. Honi soit qui mal y pense, ou seja: envergonha-se quem nisto vê malícia.
Está aí a liberdade, a libertação em curso.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília