SONATA PARA CARMEN¹

(CAPÍTULO 19 DO LIVRO “BORBOLETAS E LOBISOMENS”, DO HISTORIADOR HUGO STUDART, QUE REVELA NOVOS FATOS E ASPECTOS DA GUERRILHA DO ARAGUAIA)

(…) Carmen Navarro Rivas atravessou quatro décadas à espera de uma música. Qual? Ora, ela nunca contou, jamais revelou. É um segredo, um dos mais fechados dentre os arquivos secretos da ditadura militar brasileira. Mas a espera foi torturante. Carmen aguardou a chegada dos acordes que seu filho Hélio Luiz Navarro de Magalhães compôs antes de partir. A última vez que se viram foi em 1970. Hélio tocou-lhe a composição e partiu. Tinha 21 anos. Foi se juntar a um punhado de estudantes que montavam uma guerrilha na região do Araguaia. Era estudante de Química, falava francês, tocava piano e compunha músicas. Adotou o codinome de Edinho e aprendeu sozinho a tocar flauta. Hoje figura na lista dos 243 desaparecidos da ditadura[2].

O coração de mãe, as informações que apura, tudo dá conta que Hélio Luiz sobreviveu à aventura e que atravessou mais de quarenta anos resguardado sob a identidade que lhe arrumaram os militares. Por muitos anos Carmen alimentou a esperança de abraçar o filho ao menos uma vez. Em fins de 2016, aos 87 anos, lúcida, culta e bem informada, estava conformada em receber um singelo sinal de vida – a música que lhe compôs antes de se transformar num “desaparecido”. Somente os dois conhecem os acordes. Poderiam chegar por e-mail anônimo, ou via CD postado no Correio. Ela só esperava esse acalento.

A história por trás desse drama é delicada – e provoca tantas fúrias quanto são as lágrimas derramadas por Carmen. Já é aceito, historicamente, que em fins de 1973, depois de duas campanhas militares dentro das Leis da Guerra, o presidente Emílio Médici deu ordens ao Exército para caçar e aniquilar por completo os 47 guerrilheiros que ainda lutavam no Araguaia. Não queria ninguém vivo. Coube a Ernesto Geisel, seu sucessor, cumprir a ordem.

Ocorre que pelo menos sete deles teriam sido poupados. Uso aqui os verbos na condicional, em sinal de prudência acadêmica. Esses guerrilheiros, que passaram a ser chamados de “mortos-vivos” pelos militares, teriam feito acordo (hoje chamado de delação premiada) e recebido novas identidades. Tal qual ocorre nos decantados programas de proteção às testemunhas dos Estados Unidos, pelo acerto, não poderiam sequer procurar suas famílias. Teriam que “morrer” da antiga vida e “renascer” com outra história. Alguns seguiram a ordem com rigor, como Hélio Luiz.

A Operação Mortos-Vivos encontra-se nas categorias dos chamados “segredos de Polichinelo”, inclusive com alguns dos nomes dos sobreviventes conhecidos há quatro décadas por grande parte dos antigos militares da repressão, e há mais de vinte anos pelos militantes dos Direitos Humanos. O ex-ministro Jarbas Passarinho já revelou, reafirmou e confirmou em entrevistas à imprensa a existência dos “mortos-vivos”; contou ainda que empregou dois deles no Ministério da Educação e Cultura, MEC, quando era o titular da pasta no governo de Emílio Médici.

Em janeiro de 2011, o Ministério da Defesa e a Advocacia-Geral da União entraram com pedido junto à Justiça Federal para que a Polícia Federal investigue a possibilidade de alguns dos guerrilheiros que constam na lista dos desaparecidos políticos, na verdade, terem sobrevivido. A juíza Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça Federal em Brasília, responsável pela sentença que obriga a União a procurar pelos desaparecidos do Araguaia, acatou o pedido e expediu ordem à Polícia Federal(…)

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A imagem pode conter: Hugo Studart, sentado