A penúria dos 0,4%. Por Alexandre Schwartsman
A penúria dos 0,4%
Por Alexandre Schwartsman
Se não mudarmos este estado de coisas uma séria crise fiscal é apenas questão de tempo.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, Coluna do autor, edição de 15 DE AGOSTO DE 2018
A história provavelmente aconteceu, embora os personagens sejam, como de hábito, desconhecidos. De qualquer modo, um jogador de futebol, perguntado porque ele e seus colegas repetiam sempre as mesmas respostas, teria parado um momento para refletir e disparado: “não sei; talvez porque vocês façam sempre as mesmas perguntas”.
Conto o episódio preventivamente: caso um dos 18 leitores tenha a sensação de já ter lido esta coluna, saiba que eu também tenho a sensação de já tê-la escrito. O chato não é escrever sempre a mesma coisa; mas perceber como certas questões permanecem rigorosamente imutáveis.
…Quando consegui controlar o choro copioso que me acometeu ao imaginar os pobres aposentados do Judiciário (ao menos, me consolei, não estão sob regime análogo à escravidão) endureci meu coração…
Refiro-me à proposta de aumento dos salários dos ministros de Supremo, justificada por Ricardo Lewandowski pela situação de “penúria extrema” dos aposentados do Judiciário, ecoando, não por acaso, a ex-ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, que pretendia somar ao seu vencimento ministerial a aposentadoria como desembargadora argumentando que, se não fosse atendida, trabalharia sob condições análogas à escravidão por receber apenas R$ 33 mil/mês (Lewandowski ganha R$ 37,5 mil/mês).
Quando consegui controlar o choro copioso que me acometeu ao imaginar os pobres aposentados do Judiciário (ao menos, me consolei, não estão sob regime análogo à escravidão) endureci meu coração, como ensinado no curso de Economia, e fui atrás dos números.
Descobri, por exemplo, que em 2015, de um total de 162 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade, apenas 708 mil (0,4% do total) recebiam valores superiores a 20 salários-mínimos por mês. Como, a preços de hoje, o salário-mínimo de 2015 equivaleria a R$ 918/mês, falamos de um universo de pessoas cujo rendimento ultrapassaria hoje R$ 18 mil/mês. (Os aposentados do Judiciário recebem, em média, R$ 18 mil/mês).
Já a faixa média de renda dos 0,4% atingia R$ 28,5 mil/mês também a preços de hoje, ou seja, mesmo dentro deste seleto clube os salários dos ministros do Supremo superam em cerca de 18% (31% no caso de Lewandowski) o rendimento médio do grupo (e isto sem contar os eventuais “penduricalhos” associados à função).
Argumenta-se que o impacto seria pequeno, na casa de R$ 3 milhões em 2019, “menor do que o valor recuperado pela Lava Jato”. Este número, porém, considera apenas o aumento dos ministros do Supremo. Incluindo os efeitos-cascata por conta da elevação do teto salarial do setor público, de aumentos similares não só do Judiciário, mas também do Ministério Público, bem como estados e municípios há quem estime que a conta do “modestíssimo reajuste de 16%” seja da ordem de R$ 4 bilhões/ano, ou seja, cerca de quatro Lava-Jatos por ano.
É bem verdade que o montante empalidece face ao gasto dos três níveis de governo no ano passado, R$ 3,1 trilhões, mas equivale ao orçamento anual da CAPES, que semana passada motivou (de forma equivocada, diga-se de passagem) protestos contra o teto de gastos.
Face às mesmas questões, as conclusões são as mesmas: (a) o estado brasileiro foi capturado por grupos de interesse, que canalizam para si fração considerável da renda da sociedade, no caso o funcionalismo, que se apropria de pouco menos de metade do gasto dos 3 níveis de governo, ou seja, cerca de 22% do PIB; e (b) o problema não é o teto de gastos, mas a existência de privilégios na escala exposta acima.
Se não mudarmos este estado de coisas uma séria crise fiscal é apenas questão de tempo.
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Ajudando a reforçar a ideia da similitude de artigos: “uma verdade repetida mil vezes continua a ser uma verdade”!