A outra morte anunciada
Não foi uma premonição, mas não deixa de ser curioso mencionar os problemas da Argentina numa semana e observar seu Ministro da Economia, Martin Lousteau, renunciar na semana seguinte. Há, diga-se, uma conexão profunda entre estes dois fenômenos e entendê-la pode ajudar a evitar que se cometam os equívocos que estão levando a economia argentina para a rota da instabilidade.
Lousteau caiu, em última análise, porque, apesar do discurso heterodoxo, começou a perceber o que todos os argentinos têm notado. Ainda que o índice oficial de inflação aponte para uma taxa de 8,8% em março deste ano, a verdadeira taxa de inflação parece ser muito mais alta. De fato, consultorias privadas estimam que a inflação possa ter atingido valores acima de 20% e as estimativas com base no deflator implícito do PIB põem a inflação a 18% no último trimestre de 2007, mais que o dobro da medida oficial.
Fato é que a inflação argentina é elevada e o governo sabe disto. Para conviver, porém, com esta dificuldade, tem tomado medidas que buscam mascarar o problema ao invés de resolvê-lo. Assim, preços têm sido controlados, direta (como no caso das tarifas públicas), ou indiretamente, por meio de tributos (retenciones) e outras medidas do gênero, que nós brasileiros conhecemos da experiência econômica dos anos 80, sem contar, é claro, com as suspeitas de manipulação dos índices de preços.
Tais expedientes, porém, estão chegando ao limite. Ao impedir que o sistema de preços funcione livremente, contratam-se novos problemas à frente. Assim, devido ao controle de preços a oferta não se expande para acomodar a demanda crescente, o que explica, por exemplo, o paradoxo de um país rico em gás ver sua produção cair 13% nos últimos quatro anos, gerando um nada desprezível risco de “apagão”. Da mesma forma, ao impedir e taxar as exportações de produtos agrícolas, o governo encomenda uma crise de abastecimento para o futuro, com conseqüências para o Brasil.
E qual a origem do problema inflacionário argentino? Simplesmente seu regime cambial e monetário. O BC argentino pratica o sonho de muitos economistas brasileiros: o câmbio só “flutua” para cima, graças à combinação das intervenções do BCRA e da política de juros que, como expliquei na última coluna, apóia as intervenções garantindo que a taxa doméstica de juros não fique muito distante da taxa internacional, devidamente ajustada ao risco-país.
No contexto, porém, de preços de commodities crescentes, este arranjo é a receita ideal para um enorme problema inflacionário. Por um lado, os preços de exportações em alta contaminam diretamente os preços domésticos. Por outro lado, como a melhora de preços de exportação implica apreciação da taxa real de câmbio, os preços dos produtos não-comercializáveis devem subir ainda mais, o que é possível graças à demanda doméstica, impulsionada por juros baixos. O resultado final é apreciação cambial por meio de inflação mais elevada, ao invés de apreciação da taxa nominal de câmbio.
Lousteau pretendia desacelerar a economia com juros mais altos (portanto permitindo que o câmbio apreciasse), alterando precisamente o regime monetário-cambial, o que acarretou sua renúncia. Não é difícil, pois, entender o que está na raiz do problema argentino. Difícil mesmo é entender como ainda existem economistas no Brasil (hoje algo escondidos) que defendem ser este o regime a ser seguido.
(Publicado 30/Abr/2008)
Alex,
Nao eh tao dificil entender porque existem economistas no Brasil que defendem o kirchnerismo economico.
Eh o baixo nivel de capital humano.
“O”
Alex,
O Rodrik recentemente comentou sobre a argentina no blog dele (http://rodrik.typepad.com). Disse que o desempenho da economia argentina tem sido espetacular por causa de uma alta taxa de investimento e uma PTF crescendo violentamente, tudo isso por causa da “magic of sustained currency undervaluation”. Ele assume que a inflação tem sido um grande problema e recomenda uma poupança maior do governo. Traduzindo: a depreciação do câmbio para o Rodrik tem que ser feita de uma maneira ortodoxa. Ele me parece bem desapontado com o governo argentino, só agora deve ter percebido a diferença entre o desenvolvimentismo dele e o de quermesse.
O que você acha que vai acontecer com a Argentina à partir de agora? A taxa de investimento deve cair bastante?
Alex,
Li recentemente no site do Gustavo Franco um artigo seu de 7 de fevereiro de 2007 intitulado “cui bono”, quando você rebatia o argumento de que a apreciação do câmbio reduzia o crescimento do PIB. Na mesma seção há um artigo de Maria Cristina Pinotti e Afonso Celso Pastore que afirmam que nos últimos anos o país tem crescido mais em anos de apreciação cambial do que em anos de depreciação. O paper do Rodrik sobre a relação entre crescimento econômico e câmbio depreciado sugere que tal relação, que só se observa em países de renda média e baixa, está relacionado com fraqueza institucional/contratual e falhas de mercado a que estão submetidos os tradeables em tais países. Posso concluir que o Brasil não sofre de tais problemas, já que crescemos mais com câmbio em apreciação do que com câmbio em depreciação?
Guilherme:
Para começar, esta história que o câmbio argentino está desvalorizado não me parece verdadeira. O câmbio nominal de fato está depreciado, mas – dado que a inflação é elevada – isto não necessariamente é o caso do ponto de vista da taxa de câmbio que realmente importa, i.e., a taxa real de câmbio.
O problema é que não dá para saber qual a real taxa de inflação na Argentina. Tentei contornar este problema usando os deflatores implícitos dos setores do PIB, para capturar a relaçao entre preços de comercializáveis e não-comercializáveis. Com todas as ressalvas, o que esta conta me mostrou é uma apreciação real do câmbio da ordem de 20% desde 2004, não muito diferente do que estimo para o Brasil usando a mesma metodologia.
Se isto é verdade, qual a mágica argentina? Parte dela (cada vez menos relevante para explica o desempenho na margem, reconheço), é ter iniciado o ciclo atual de um ponto muito abaixo do potencial, talvez algo como 10% abaixo do potencial. Neste caso, pelo menos nos estágios iniciais, o crescimento foi apenas a reaproximação ao PIB potencial por meio de utilização de uma enorme folga de recursos.
Isto é menos veradeiro desde 2005. Neste caso o que tem impulsionado o crescimento do PIB argentino é a demanda doméstica, já que a demanda externa tem contribuições negativas desde 2003, o que – a meu ver – resulta de uma política monetária frouxa, já que o BCRA faz um “peg” implícito da taxa de câmbio.
Não por acaso, a inflação argentina começa a se acelerar decisivamente no final de 2004.
Vale dizer, mesmo com alguma melhora da capacidade de crescimento potencial desde 2004, o crescimento recente argentino, no ritmo observado, não é sustentável. Em particular não parece ter nada a ver com a taxa de câmbio desvalorizada, vide as contribuições negativas do setor externo e o crescimento baseado na demanda doméstica.
Quanto ao paper do Rodrik, eu cheguei a comentar um email do Samuel Pessôa para ele, notando que o resultado de crescimento mais forte vem de um parâmetro que captura (advinhem) a taxa de poupança da economia, o que o Rodrik reconheceu ser verdadeiro. Em outras palavras, o resultado dele não é câmbio mais fraco = maior crescimento, mas sim poupança mais alta = crescimento mais alto & câmbio mais fraco.
Abs
Alex
“O”:
Concordo. É só ver quem acha o regime argentino do caramba: os mesmos que recomendam aos seus alunos estudar menos.
Abs
Alex
Alex,
Acho que vale a pena bater na tecla que os resultados do Rodrik que cambio depreciado tem efeitos positivos no crescimento soh sao encontrados em paises de renda mais baixa que o Brasil. Eh um resultado relevante para Africa, India, China etc, nao para o Brasil.
“O”
Prezados,
dei uma lida no blog de Rodrik. Ele está bem consciente da apreciação real do câmbio e me pareceu bem claro no texto a lógica que Samuel e Alexandre apontaram. Ele fala em “big fiscal surplus” muito maior do que o de hoje. Com essa política monetária argentina o superávit do governo tem q ser o do Frei Serapião. Certo?
“Ô”
Foi isso que eu quis dizer no meu segundo comentário. Parece mesmo que para o Brasil não existe a relação. O Rodrik insinua que a depreciação acaba por favorecer o aumento da PTF, mas no Brasil parece que ela é maior em tempos de câmbio mais apreciado, devido à importação de bens de capital e maior exposição do setor exportador à concorrência. Se tudo isso é verdade, então qualquer estratégia de depreciação real do câmbio para estimular crescimento econômico no Brasil não deve ser levada a sério.
Falando em morte anunciada, com o grau de investimento do Brasil e outros eventos recentes, parece que as divisoes na America do Sul estao bem realcadas.
De um lado:
Chile… crescimento e inflacao moderados, mas situacao fiscal fortissima…
Colombia… crescimento rapido, inflacao moderada…
Peru… crescimento rapido, inflacao moderada, posicao fiscal melhorando…
No meio, o Brasil, com crescimento moderado e situacao fiscal estavel, mas inflacao baixa;
e na outra ponta…
Argentina… Inflacao fora de controle, campo pegando fogo, crise institucional…
Bolivia… Inflacao, crise institucional, possibilidade de guerra civil…
Ecuador… Estagnado, producao de petroleo declinante…
Venezuela… mais de 30% de inflacao, movendo-se em direcao ao socialismo e a boçalidade…
Finalmente, os bons recompensados, os quermesseiros queimando no inferno.
“O”
“O”:
E a S&P rebaixou a perspectiva da avaliação argentina de “estável” para “negativa”.
O silêncio da quermesse é ensurdecedor…
Abs
Alex
Guilherme:
O Pastore há muito argumenta que, pelo menos do ponto de vista de investimento (não necesariamente PTF), o câmbio mais apreciado acaba acelerando o crescimento.
Já o meu artigo que você viu no site do Gustavo Franco (Cui Bono – está aqui no blog também) não entrava nestas considerações.
Na verdade o Fernando Canzian da Folha tinha escrito um artigo falando do “vazamento” da demanda via importações que me pareceu particularmente equivocado.
Aí eu chamei a atenção para o fato que o crescimento é mais forte precisamente quando o “vazamento” é maior, simplesmente porque estes são os anos nos quais a demanda doméstica é mais forte (assim com as importações). Depois entrei nas considerações (todas de curto prazo) acerca do papel das importações de complementar a oferta doméstica. Nada muito sofisticado não.
Abs
Alex
Aposto que deve ter algum quermesseiro que comecou a rascunhar um artigo argumentando que o mesmo S&P que deu o negativo para a Argentina tinha dado AAA para as hipotecas americanas…
Daih veio o grau de investimento para o Brasil, e ta da! S&P em sua sapiencia reconhece os avancos da politica economica petista!~
Um anônimo falou sobre a divisão da economias na América do Sul e terminou afirmando q os bons estão sendo recompensados e os maus ardendo no inferno. Isso me parece bem claro. Porém, se vc ouvir os quermesseitros eles falarão sobre o declínio do neoliberalismo. Qual será a métrica deles (tudo bem q a familiaridade deles com métricas já é bem conhecida). Conversa difícil com essa rapaziada…..
Alex,
A questão da taxa real de câmbio é útil para ilustrar a ignorância econômica de alguns “entendidos”. Existe algum número mágico para o “pass-through” em economias como a nossa, ou depende do nível da atividade econômica?
Abç.
M.
“Um anônimo falou sobre a divisão da economias na América do Sul e terminou afirmando q os bons estão sendo recompensados e os maus ardendo no inferno. Isso me parece bem claro. Porém, se vc ouvir os quermesseitros eles falarão sobre o declínio do neoliberalismo. Qual será a métrica deles (tudo bem q a familiaridade deles com métricas já é bem conhecida). Conversa difícil com essa rapaziada…..”
Caro Jose, respeito eh necessario, nao eh “um anonimo”, mas “O” anonimo.
Quanto aa substancia de seu comentario, eles nao tem metrica, e muitos deles vao acabar culpando a Besta americana pelo colapso das economias quermesseiras.
Por exemplo, uma recessao global (iniciada em parte pela crise de credito americana) ou um aperto monetario pos-eleitoral podem derrubar o preco das commodities, e com eles, as economias quermesseiras.
Nos olhos da quermesse, o culpado da Venezuela ter um PIB per capita menor em 2010 do que em 1998 vai ser os EUA… Ainda mais porque na eventualidade de uma crise, um governo de centro-direita vai acabar tendo que limpar a casa, possivelmente com o suporte das instituicoes demoniacas (Banco Mundial e FMI).
Quermesseiros nunca aprendem.
“O”