O tigre de papel. Por Carlos Brickmann

Opinião

O TIGRE DE PAPEL

 CARLOS BRICKMANNFake news devem ser combatidas pelo jornalismo profissional
ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO SITE DA 
FOLHA DE S. PAULO, EDIÇÃO DE 19 DE JULHO DE 2018

Data: 31 de março de 1964, à noitinha. O repórter Antônio Aggio Jr. telefona do QG do 2° Exército à Folha  e passa a notícia-bomba: o general Amaury Kruel, amigo pessoal do presidente João Goulart, decidira aderir ao movimento por sua deposição. Com a decisão de Kruel, estava selado o destino do então presidente da República.

O pessoal mais jovem começa a planejar uma edição extra e é freado por Carlos Laino Jr., experiente chefe de Redação: “Não quero furos num caso desses. Quando o Estadão também tiver a notícia, aí saímos juntos. É coisa séria demais para correr riscos”. Ficamos indignados: onde já se viu esperar que a notícia se espalhasse antes de divulgá-la? Mas Laino tinha razão.

Um grande jornal tem de ser a última instância; tem de zelar pela notícia, tem de ter certeza. Um grande jornal só é grande quando capaz de garantir a qualidade de suas notícias. Pode até errar, mas não pode deixar de se esforçar ao máximo para verificar o que publica. O leitor precisa saber que, se a notícia espetacular da internet não saiu nos grandes jornais, é porque não aconteceu.

O resto são firulas: cores, fios, diagramação. Devem existir, devem merecer investimento, precisam ser continuamente aperfeiçoados, para tornar mais eficiente o entendimento do noticiário. Podem facilitar a leitura, o que é desejável; mas não são sua essência. Contrariando Guimarães Rosa, só existem por boniteza, não porém por precisão.

Notícias falsas —desculpem: em português moderno, fake news— devem ser combatidas assim: com jornais que se esmerem em publicar apenas o que verificaram.

Tudo o que um jornal impresso faz de firula a internet faz melhor: tem movimento, gráficos que se abrem à medida que são vistos, é instantânea, é de graça. Por que pagar pelas firulas impressas que na internet são gratuitas, melhores e não sujam as mãos de tinta? Porque o que se paga não é o bordado bonito, é a notícia verdadeira, a vida como ela é.

Notícias falsas —desculpem: em português moderno, fake news— devem ser combatidas assim: com jornais que se esmerem em publicar apenas o que verificaram. Vão acabar com as fake news? Não; mas darão ao público uma fonte confiável para que não acredite em qualquer notícia maluca.

Fake news sempre houve (e sempre haverá, agora com mais força porque a internet dá a todos a possibilidade de divulgar o que quiserem, a baixo custo).

Sempre houve fake news. Portugal passou séculos acreditando que o rei D. Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir, na África, não tinha morrido, e um dia voltaria. As fake news sobreviveram a três documentos oficiais: a ata de entrega do corpo às autoridades portuguesas; a um ofício do embaixador espanhol confirmando a chegada do cadáver resgatado aos mouros; a uma carta do cardeal d. Henrique ao rei da Espanha, Felipe 2º, agradecendo seus esforços no caso. E sobreviveram ao tempo, pela crença de que, apesar de multicentenário, Sua Majestade retomaria seu trono.

Há coisas mais recentes. Logo após a Segunda Guerra Mundial, o grupo radical japonês Shindo Re-mei garantiu aos imigrantes japoneses no Brasil que o Japão tinha ganhado a guerra, e que as informações em contrário vinham da imprensa burguesa a serviço dos ianques de olhos azuis (não, não foi assim: esta definição da imprensa burguesa foi dada pelos fake news de esquerda muitos anos mais tarde, mas o Shindo Re-mei tinha ideias idênticas sobre jornais e jornalistas que não seguiam sua linha).

Implantou-se o terror na colônia japonesa: houve assassínios, atentados, violência contra imigrantes que acreditavam na rendição do imperador Hirohito. Há um belo livro sobre o tema, Corações Sujos, de Fernando Morais. Hirohito fez pelo rádio o anúncio da derrota; a rendição das Forças Armadas Imperiais ao general MacArthur, a bordo do encouraçado Missouri, foi fotografada e filmada, mas liquidar o Shindo Re-mei demorou.

Fake news sempre houve (e sempre haverá, agora com mais força porque a internet dá a todos a possibilidade de divulgar o que quiserem, a baixo custo). Imaginar que um acordo com Google e Facebook vá reduzir as fake news é, ao mesmo tempo, ingênuo e perigoso: ingênuo por achar que algoritmos, seja lá isso o que for, serão capazes de separar a verdade da mentira; segundo, por implantar a censura nas redes sociais e, pior ainda, delegá-la a empresas particulares multinacionais com fortes interesses nas mais diversas áreas econômicas e políticas.

…Como os grandes felinos, cabe aos tigres de papel devorar os veículos especializados em notícias falsas, usando apenas sua credibilidade para que se enfraqueçam e evitando que se expandam descontroladamente.

Mais grave, a parte da censura vai funcionar, e sua entrega a empresas privadas com poder de bloquear opiniões contrárias às suas já está sendo feita; mas a parte de extinção das fake news não vai funcionar, porque não tem como funcionar. Teremos o pior de dois mundos: notícias falsas e censura prévia, controlada de fora do país pelo poder econômico.

Enfrentar o problema pode ser mais simples. Os grandes jornais ocupam o topo da cadeia alimentar das notícias. Como os grandes felinos, cabe aos tigres de papel devorar os veículos especializados em notícias falsas, usando apenas sua credibilidade para que se enfraqueçam e evitando que se expandam descontroladamente.

Os grandes jornais, que nos últimos tempos se lançaram a uma disputa insana (que não têm como ganhar) com a internet, precisarão voltar às origens e investir novamente em jornalismo —pessoal, pesquisa, investigação, captação e verificação de notícias. Eles o farão, tão logo percebam que o futuro de suas atividades é dar a palavra final, em vez de disputar a imperceptível primazia de poucos segundos na primeira divulgação de um assunto.

Há mais tigres, além dos de papel, na área de comunicação. Há os grandes jornais de rádio, os grandes jornais da televisão, as grandes revistas; há sites e blogs na internet que prezam os princípios básicos do jornalismo. Cabe a todos a mesma função dos tigres de papel: dar a palavra final, garantindo ao máximo a realidade dos fatos, para que o consumidor da informação possa dizer que sua percepção do que é notícia falsa ou verdadeira passa pelo aval de um grande veículo.

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Carlos Brickmann

Carlos Brickmann – Jornalista e diretor do site Chumbo Gordo; um dos fundadores do Jornal da Tarde, ex-repórter especial e editor da Folha de S. Paulo e ex-editor-chefe da Folha da Tarde

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