Quando Bolsonaro fez aquele discurso dizendo que a vida dele era uma desgraça, possivelmente ainda não estava consciente do que o esperava. Suas queixas eram prosaicas, como não poder tomar um caldo de cana do outro lado da rua.
À medida que o tempo passa, sua situação fica cada vez mais difícil. Não diria que a vida de Bolsonaro seja uma desgraça porque a vida, por definição, é uma graça. Mas nunca ele foi acossado por uma constelação de problemas tão sérios. A fase de negacionismo, que pode ter provocado a morte de milhares de brasileiros, já está documentada satisfatoriamente pela CPI da pandemia.
Da mesma forma, a política de estimular a destruição dos principais biomas brasileiros tornou-se um fato reconhecido no mundo. E com a queda do então ministro Ricardo Salles, o que parecia apenas uma posição retrógrada se tornou suspeita também de ser corrupção. E exatamente nesse terceiro capítulo, o da corrupção, o governo agora se move num pântano de desculpas e evasivas que não convencem ninguém.
O contrato para a compra da vacina Covaxin, conforme o próprio Tribunal de Contas acentua, começou tratando de um preço de US$ 10 a dose e terminou em US$ 15. Além disso, o negócio foi acertado com uma empresa chamada Precisa, que em outra encarnação já deu calote no Ministério da Saúde. Empresa que manda uma nota fiscal de US$ 45 milhões para ser paga a uma offshore em Cingapura e, distraidamente, cobra US$ 1 milhão por frete que, pelo contrato, deveria ser pago por ela. E, finalmente, produz documentos com erros em número de doses que jamais entregaria ao País.
Ao ser informado de tanta confusão, Bolsonaro limitou-se a dizer que aquilo era um rolo do deputado Ricardo Barros. Acontece que é um rolo de seu governo: ele próprio escreveu ao primeiro-ministro da Índia manifestando interesse na vacina, o que não fez com nenhum outro imunizante. Ao contrário, Bolsonaro desqualifica a CoronaVac e insinua que a Pfizer nos transforma em jacarés.
O resultado de tudo isso é uma substancial perda de apoiadores. E mais: o surgimento de um movimento popular que ganha corpo nas ruas. Inicialmente era um movimento marcadamente de esquerda e agora se amplia para o centro e para a própria direita.
Bolsonaro aproveitou algumas ações violentas para desqualificar a presença da oposição nas ruas. Mas foram atos de violência muito suspeitos de terem sido cometidos por elementos infiltrados.
Repercutiu também uma ação do PCO, o Partido da Causa Operária, contra um grupo do PSDB que defende a diversidade. É algo também explicável: o PCO não consegue eleger ninguém e nos editoriais de seu jornal defende as manifestações homofóbicas das torcidas de futebol como liberdade de expressão. Qualquer pessoa sensata vai compreender que, na verdade, manifestações de sectarismo e homofobia não representam uma ampla frente contra Bolsonaro.
Neste momento, em que Bolsonaro está acuado, surge a discussão: pedir o impeachment ou deixá-lo sangrar? Esses termos não são contraditórios. O pedido de impeachment é um instrumento que agrega forças e ele significa um desgaste constante. Há quem afirme que o impeachment enfraquece o governante quando ele o supera no Parlamento. Mas não foi isso que aconteceu com Trump.
… os dados estão na mesa, o movimento nas ruas e o prestígio de Bolsonaro declinando nas pesquisas. Tudo aponta para uma nova época cujos contornos exatos ainda não estão desenhados. O que se sabe é que futuro exclui um presidente que devastou vidas, matas e a imagem internacional do Brasil…
Quando se está num movimento descendente, quase tudo empurra para baixo. O famoso caso das rachadinhas, por exemplo, não tem efeito jurídico sobre Bolsonaro. Mas recentes gravações divulgadas pela colunista Juliana Dal Piva no site UOL mostram que Bolsonaro também contratava parentes para receber parte de seu salário. Na verdade, tudo indica que seja ele o pioneiro familiar dessa técnica, posteriormente ensinada aos filhos parlamentares.
Tudo isso serve para confirmar a tese de que Bolsonaro, ao longo de sua longa carreira, não participou de grandes esquemas de corrupção porque criou a sua própria fonte de financiamento, destinada a manter campanhas e aumentar o patrimônio pessoal, principalmente por meio da compra de imóveis.
Enfim, os dados estão na mesa, o movimento nas ruas e o prestígio de Bolsonaro declinando nas pesquisas. Tudo aponta para uma nova época cujos contornos exatos ainda não estão desenhados. O que se sabe é que futuro exclui um presidente que devastou vidas, matas e a imagem internacional do Brasil.
Chega-se a um momento em que a habilidade da oposição se torna o fator decisivo. Só uma sucessão de erros gigantescos pode tornar viável Bolsonaro nas eleições de 22. Ao menos essa é a leitura que o momento permite. Daqui para a frente ele poderá até tomar um caldo de cana do outro lado da rua. Mas sua vida política será uma desgraça.
De qualquer forma, abre-se um tempo de discussão sobre as causas da ascensão de Bolsonaro, o pensamento de seus apoiadores. Em função disso será possível descortinar um horizonte mais amplo que sua simples derrota: um esforço para que isso não mais se repita na História do Brasil .
Essa seria a prova de que, apesar de tanto sofrimento humano e destruição ambiental, pelo menos sabemos fazer a lição de casa.
Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista especial. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas.