O preço a pagar. Por José Horta Manzano
O primeiro risco vem de fora. Uma vez instalado na incômoda posição de país de governo ditatorial, o Brasil terá problemas feios. Desde a criação da ONU, ao final da última guerra, a comunidade internacional tem mostrado clara rejeição a regimes autoritários.
Artigo publicado no Correio Braziliense e no blog do autor, 29 de junho/21
Domingo 23 de maio, o voo da Ryanair partiu de Atenas no horário previsto. O trajeto até Vilna (Lituânia) não chegava a 3 horas. Já faltando meia hora para o pouso, quando o avião cruzava o espaço aéreo da Bielorrússia, um caça MIG 29 das Forças Aéreas daquele país emparelhou e ordenou ao Boeing que pousasse imediatamente. Pelo rádio, os controladores aéreos explicaram ter recebido denúncia de bomba escondida no avião, daí a ordem de aterrissagem imediata.
O piloto obedeceu. Pousou em Minsk, capital do país. Ato contínuo, policiais entraram no avião e agarraram um dos passageiros, rapaz jovem, levado enquanto protestava aos berros. Ninguém entendeu o que se passava. Em seguida, todos foram evacuados. Após inspeção das bagagens, as autoridades informaram que, não tendo sido encontrado explosivo, devia tratar-se de falso alarme. Liberado, o avião seguiu viagem – com um passageiro a menos.
Descobriu-se que o rapaz capturado pelos bielorrussos era Roman Protassevitch, de 26 anos. Auto exilado no exterior, ele tinha sido redator-chefe de uma plataforma de oposição ao regime do país, muito atuante na recente onda de contestação à reeleição do presidente Alexandre Lukachenko, o último ditador da Europa, homem que há 27 anos controla a Bielorússia com mão de ferro. Nos calabouços do país, o rapaz há de estar passando maus momentos. Dado que é acusado de ‘terrorismo’ e que seu país é o último da Europa a aplicar a pena de morte, teme-se por seu futuro.
A União Europeia não podia deixar de punir o ato de pirataria que atingiu um de seus aparelhos voando entre dois de seus aeroportos. Em outros tempos, se declararia guerra; hoje, ataca-se o bolso. A UE anunciou que vai aplicar sanções pesadas contra a economia bielorrussa. Sete setores serão atingidos, entre os quais as exportações de potássio, tabaco e derivados de petróleo – importantes fontes de renda do país. Além disso, o ditador, sua família e uma centena de personagens do regime estão proibidos de entrar em território europeu. Seus haveres pecuniários e imobiliários serão confiscados. Os EUA, o Canadá e o Reino Unido também anunciaram sanções. Washington não vai mais conceder visto de entrada a 155 personalidades bielorrussas.
Temos hoje, no Brasil, um capitão que sonha com uma carreira de ditador. Ele tem conseguido avançar no projeto explorando o lado venal da alma humana. Cargos, títulos, promoções, verbas, aumentos de salário, benefícios têm sido distribuídos a mancheias. Essa fidalguia tem-lhe granjeado apoios importantes. Capturadas as principais instituições da República e cooptados os representantes do povo, não é impossível que nosso aprendiz de ditador realize seu sonho. O grande obstáculo serão as eleições de 2022. Com a imprudente cumplicidade do Parlamento, doutor Bolsonaro é bem capaz de conseguir, de um modo ou de outro, impugnar o resultado das urnas e melar o jogo a seu favor. Se as coisas correrem a seu contento, teremos em breve um Lukachenko tropical.
O primeiro risco vem de fora. Uma vez instalado na incômoda posição de país de governo ditatorial, o Brasil terá problemas feios. Desde a criação da ONU, ao final da última guerra, a comunidade internacional tem mostrado clara rejeição a regimes autoritários. Cuba, Coreia do Norte, Irã são exemplo de nações que sofrem sanções em virtude de não se encaixarem no Zeitgeist. No Brasil, sofreremos pesado castigo coletivo. A Bielorrússia ainda tem a Rússia, vizinha e madrinha. O Brasil-ditadura não terá vizinho nem padrinho. Se Bolsonaro e os filhos forem impedidos de viajar para o exterior, não hão de fazer caso. Já se a proibição atingir amigos, assessores e congressistas, ah, o perfume do croissant fresquinho das boulangeries parisienses há de fazer muita falta.
O segundo risco vem de dentro. Tropical ou não, autocrata é autocrata, um indivíduo paranoico, que desconfia de tudo e de todos. Sua imaginação doentia vive à cata de novos inimigos, reais ou imaginários. O capitão, com histórico de afiliação a 9 diferentes partidos, é descompromissado e volúvel. Uma vez parafusado ao trono, ninguém poderá mais se considerar a salvo, nem dormir tranquilo na certeza de que os perseguidos serão sempre os petistas, psolistas e “comunistas”.
Hoje é dia do “outro”, mas amanhã esse “outro” pode ser qualquer um. Até os que hoje se enrolam na bandeira pra clamar por intervenção militar.
____________________________________________________________
JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
__________________________________________________________________________
Diz o colunista: “(…) ninguém poderá (…) dormir tranquilo na certeza de que os perseguidos serão sempre os petistas, psolistas e “comunistas”.” E completa: “(…) amanhã esse “outro” pode ser qualquer um.”
Não sei se entendi, mas, se petistas, psolistas e comunistas fossem os únicos perseguidos, poderíamos “dormir tranquilos”?
Quem sabe, poderíamos até torcer pela perseguição… O que importa, aqui, não é mais o direito universal – o de não ser perseguido por discordância ideológica, por exemplo. Importa mesmo, parece, é que alguns devem continuar a merecê-lo mais que outros.
Mário Quintana disse:
“A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.”
O comentário de RedFox está aí pra provar que o poeta tinha razão.
O que eu quis dizer é que, se se instalasse no Brasil um governo autoritário e trapalhão liderado pelo capitão – que Deus nos livre e guarde! –, ninguém mais terá certeza do que vai acontecer no dia seguinte. Inimigos do passado podem, de repente, tornar-se amigos do peito. Amigos do peito de anos e anos podem de repente ser vistos como perigo a ser eliminado.
A paranoia marcante de todo regime ditatorial. Nosso mito já tem dado sinais de que preenche os requisitos psicopatológicos para iniciar a carreira de autocrata.
Abraço,
José Horta Manzano
Prezado J.H.Manzano. Agradeço muito pela sua atenção. Nem todos os que escrevem se dispõem a conversar com quem lê. Habitualmente leio suas colunas porque sei que posso nelas encontrar um diálogo, mesmo que virtual, ponderado e desafiador. Noto que, em sua apresentação biográfica, está ali listada a atividade de ‘analista’. Não sei se se trata de (psic)analista ou não, mas alguém bem informado – creio ser seu caso – conhece algo a respeito daquilo que, desde Freud, tem-se denominado de ‘ato falho’. Pode ocorrer quando falamos – e a própria atividade psicanalítica muito deve a essa ‘falha’, sem a qual muito pouco se autorrevela no divã -, mas também pode aparecer quando escrevemos, ainda que menos frequentemente, pois quem escreve e publica, normalmente revisa. Na filosofia da linguagem, em particular nas teorias dos atos de fala, tem-se debatido com certa frequência o estatuto do que seria um, digamos, ‘ato falho reverso’, ou um ‘ato falho impressivo’, não expressivo; ou seja, aquele que ocorre quando ouvimos ou lemos. É a isso, imagino, que o poeta pelo Sr. lembrado se refere, noutros termos – e ele está certo. Muitas vezes, a gente diz, ou escreve, o que passa por nosso pensamento mais recluso, sem sabê-lo; e são igualmente numerosas as ocasiões em que ouvimos ou lemos mais aquilo que nossos pensamentos e preconcepções andam maquinando escondidos em nós do que aquilo que foi efetivamente ditou ou escrito. Se o interpretei mal, desculpo-me pela incúria de minha leitura. Talvez ela tenha se devido à minha impaciência, ou meu desacordo explícito, com esse processo de desumanização que a esquerda, particularmente a brasileira, tem sofrido por aqui, em especial quando bolsonaristas e congêneres tentam justificar seus crimes aludindo aos alheios (e é bom notar que são incomensuráveis, não se pode compará-los entre si), e tratando seus opositores mais óbvios – petistas et alii – como gente que não merece o direito de respirar. Alguns dirão que Lula, Dilma et caterva já fizeram o mesmo com a direita, e provavelmente estarão certos, mas o fato é que, quando isso aconteceu, sempre me posicionei da mesma forma, pois julgo apenas inaceitável que atores políticos desumanizem seu adversários, subtraiam-lhes direitos fundamentais, coisifiquem-nos. Acho tão boçal o que certos petistas fizeram com a imagem de FHC – um homem decente que, há tempos, como aluno, aprendi a admirar – quanto acho criminoso, odioso, o que a direita hoje, comandada pelo ‘bolsonarismo raiz’, tenta fazer com a esquerda brasileira. Todos os países decentes do mundo, governados ou não pela direita, sabem respeitar as ideias e propostas que a esquerda traz ao debate. São necessárias. Têm lugar no debate político contemporâneo, que deve ser múltiplo, multifacetado, aberto à certeza de que monoculturas políticas só pode nos levar para trás. Democratas de verdade sabem a que me refiro.
Se o tomei como alguém que inadvertidamente incorria nesse crime de desumanização do outro, minhas desculpas são mais que devidas. Saiba que tem em mim um leitor.
Prezado RedFox,
Aqui vão meus agradecimentos pela sua franqueza, artigo raro neste Brasil atual. Vivemos, de fato, num ambiente em que, visto que cada um tem sempre razão, não sobra espaço para os outros.
Tenho minhas reservas quanto a classificar partidos, movimentos ou indivíduos como “de esquerda” ou “de direita”. Em outras terras, talvez isso faça sentido, mas não entre nós.
A esse propósito, talvez você gostasse de ler o artigo que escrevi algum tempo atrás. Na época, não saía no Chumbo Gordo, mas está no meu blogue. Aqui:
https://brasildelonge.com/2019/12/03/direita-e-esquerda-uma-salada/
A cada dia que passa, mais pessimista fico com o nível de nossos representantes. Não entendo como, depois de estar no posto há dois anos e meio, o psicopata Bolsonaro ainda é apoiado por uma parte expressiva do eleitorado. Entendo menos ainda como, depois do desastre lulopetista, o Lula ainda possa contar com outra parte expressiva do eleitorado. Como é que pode?
Stricto sensu, não sou “de direita” nem “de esquerda”, prezado RedFox. Certas visões de um e de outro quadrante me são simpáticas, mas procuro guardar os pés no chão. Tenho sempre em mente que, em países de pouca cultura, como o nosso, há pouca vigilância do eleitor sobre o comportamento de cada eleito. É por isso que políticos se sentem à vontade para fraudar a vontade (e o bolso) dos que os elegeram – na certeza de que serão reeleitos sem maiores problemas.
Forte abraço.
jhm
Prezado. Segui o link, achei o artigo e o lerei. Não sei se se aproxima do excelente livro de Alain Touraine, La fin des Sociétés (que, por falta de interesse, não foi traduzido, mesmo que eu tenha proposto a tradução por um precinho camarada… Mas não teve jeito. Ninguém notou sua necessidade, a despeito da interpretação tortuosa que uns poucos comentadores fazem dele.), mas o fato é que, as ciências sociais têm cada vez mais dificuldade de lidar com a oposição esquerda/direita. Vem daí a ideia de um fim das sociedades – ou do conceito sociológico se sociedade, nascido numa ciência social que parece cada vez menos armada para compreender o que esse conceito define hoje, quando o modo de vida, de produção, de imaginação, etc., já são outros, não os da primeira metade do Séc XX. Em todo caso, não vou entediá-lo aqui com essa história… Noto apenas que, para bolsoloides & afins, a esquerda brasileira é criminosa, doentia, e deve ser eliminada do mapa. Por mais que o PT tenha roubado, e muito, nos seus governos, parece óbvio que essa parcela da política nacional também tem gente honesta que não deveria ser afastada do debate só porque governos do PT prevaricaram (contando com a prestimosa colaboração do PP, do PMDB, do Roberto Jefferson, etc.). Precisamos tomar cuidado, pois. A fúria antipetista levou ao energúmeno. E a fúria antibolsonarista acabará levando de novo àquela mesma turma – e com o mesmo personagem central! O que precisamos, penso, não é de fanatismos extremistas que demonizem seus adversários, mas de gente honesta que se apresente entre as margens (mesmo que próximos delas, por vezes), sem que tenhamos de ver sempre, quando se diz ‘esquerda’ ou ‘direita’, a salvação ou o fim do mundo!
A salvação do mundo – ou seu fim – virá de nós. E a gente precisa saber disso.
Grato pela indicação do teu artigo. Já está na ‘reading list’.
O amigo tem razão, estamos dando cambalhota: a cada giro, some o ladrão barbudo e aparece o ladrão genocida. E assim por diante, a cada volta, lá vêm os mesmos, um empurrando o outro. Chega! Queremos ladrões novos!
A você, boa continuação!