À espera de um milagre

A produção industrial cresce no Brasil a um ritmo acelerado. Comparada ao mesmo período de 2009 o produto industrial se expandiu 18% no primeiro trimestre, número certamente muito influenciado pela base de comparação do ano passado, quando o país ainda sofria a influência do colapso da economia mundial. Olhando, porém, para o desempenho do setor na margem, isto é, na comparação com o período mais recente, já caracterizado pela forte recuperação econômica, os números não são menos impressionantes: no primeiro trimestre do ano relativamente ao último de 2009 a produção da indústria de transformação cresceu a um ritmo equivalente a 16% anualizados, chegando a 18% ao ano nos últimos dois trimestres.

É possível manter este ritmo? Segundo lideranças do setor, não há motivos para preocupação, pois “existiria capacidade instalada na indústria para atender à demanda sem que aconteça pressão sobre os preços”. Trata-se de afirmação ousada, entre outras coisas porque parece se basear mais numa declaração de vontade do que em estudo ancorado no que os números têm a dizer sobre o assunto.

De fato, num ensaio recente com meu colega Cristiano Souza, examinamos a dinâmica de ocupação da capacidade instalada do setor industrial no Brasil em resposta à produção e aos investimentos de 2004 para cá e as conclusões não sugerem, de forma alguma, que a taxa de crescimento observada nos últimos meses seja sustentável. Pelo contrário, indicam que, mesmo sob velocidade de expansão bem mais baixa, continuaremos a observar valores crescentes do Nível de Utilização da Capacidade Instalada (NUCI).

Estimamos que um aumento de 10% da produção industrial eleve, tudo o mais constante, o NUCI (medido pela CNI) em 2,7%. Curiosamente esta estimativa da intensidade de resposta do NUCI à produção parece bastante robusta, dado que, mesmo sob diferentes formulações e procedimentos estatísticos, obtivemos sempre valores próximos a esta marca. Assim, a se manter o ritmo de expansão em torno de 14-16% ao ano para os próximos 12 meses, teríamos uma elevação de 4% do NUCI, o que o colocaria na casa de 85% já o primeiro trimestre do ano que vem.

É claro, contudo, que tudo o mais não permanecerá constante. Em particular há investimentos que se transformarão em capacidade adicional em algum momento, atuando, portanto, no sentido de reduzir o NUCI. Resta, porém, saber o “quando” e o “quanto”.

Nosso estudo sugere que a defasagem entre o investimento e a criação de capacidade seja da ordem de seis trimestres. Na verdade, o comportamento recente do NUCI parece corroborar esta estimativa, pois, se ela for válida, os efeitos dos níveis relativamente elevados dos investimentos observados no terceiro trimestre de 2008 estariam produzindo seus frutos agora no começo de 2010, e, de fato, observamos um período de estabilização do NUCI, a despeito da forte expansão da produção.

No entanto, a partir do terceiro trimestre de 2008 os investimentos se reduziram consideravelmente. Em termos dessazonalizados, depois de um pico pouco superior a 18% do PIB, a formação bruta de capital fixo caiu para um nível em torno de 15% do PIB no primeiro trimestre de 2009 e se recuperou parcialmente, atingindo quase 17% do PIB no trimestre final do ano passado. Vale dizer, o ritmo de criação de capacidade entre agora e meados de 2011 não deverá ser tão intenso quanto foi no ano passado, refletindo a queda do investimento que se seguiu à crise. Muito provavelmente, portanto, não observaremos, até o primeiro trimestre de 2012, uma velocidade de geração de capacidade comparável à registrada no começo deste ano.

E quanto precisaria crescer o investimento para sustentar o crescimento da produção industrial mantendo o NUCI constante? Nossas estimativas indicam que cada 1% do PIB a mais de investimento reduziria o NUCI em 0,06%. No entanto, já sabemos que 1% a mais de crescimento aumentaria o NUCI em 0,27%. Isto significa que, para manter o NUCI inalterado, cada ponto mais de crescimento sustentado da produção requereria 4,5% do PIB a mais de investimento (2,7 ÷ 0,6 = 4,5), de preferência com seis trimestres de antecedência.

É tentador fazer a conta inversa, isto é, partir do nível corrente de investimento (17% do PIB) para estimar a taxa sustentável de crescimento usando esta relação, o que sugeriria um número na vizinhança de 4% ao ano. Estritamente falando, todavia, isto não seria correto, pois nosso procedimento gerou uma estimativa da relação marginal entre investimento e produto (isto é, quanto investimento adicional seria necessário para elevar o crescimento do produto em 1%), que não necessariamente seria a relação média entre investimento e produto, implicitamente suposta no cálculo acima.

Independente disto, no entanto, acredito que o leitor já deve ter concluído que as taxas correntes de expansão do produto não são sustentáveis. Basta lembrar que, entre o final de 2005 até a eclosão da crise no terceiro trimestre de 2008, a indústria de transformação cresceu à taxa média de 5% ao ano sob uma taxa de investimento média na casa de 16,5% do PIB. Mesmo se ignorarmos a elevação significativa do NUCI naquele período, para acelerarmos o crescimento da indústria em direção aos 6% ao ano, o investimento teria que atingir 21% do PIB. Ou melhor: teria que ter chegado a este nível há um ano e meio.

Olhando à frente, dado o nível de investimento já observado nos últimos trimestres, bem como sua perspectiva de aceleração para os próximos, é inevitável um aumento relevante do NUCI não só neste ano, mas provavelmente também em boa parte de 2011.

Isto dito, nenhum economista sério pensa no NUCI como um obstáculo, digamos, físico à expansão da produção, isto é, não falamos aqui de um gargalo tal que a produção não possa aumentar de forma alguma e que, portanto, leve ao racionamento da oferta existente pela elevação de preços. O mecanismo é bem mais sutil do que isto. Empresas podem, é claro, pagar horas extras e programar novos turnos de produção para aumentar a quantidade produzida, desde que sejam ressarcidas pelos custos adicionais decorrentes destas medidas por preços mais elevados. Não por acaso, nos três últimos processos de aceleração inflacionária no país (2004-05, 2007-08 e 2010-?) observamos também alta persistente do NUCI.

Em resumo, o desempenho recente da produção e dos investimentos sugere que o processo de ocupação da capacidade está longe do fim. Sem adequação do ritmo de crescimento ao volume de investimentos, o resultado deste cenário será a aceleração da inflação, conforme temos observado desde o final de 2009. Mais eficaz do que tentar tapar o sol com a peneira seria um posicionamento político que pressionasse por uma política fiscal que colaborasse com esta adequação, mas tenho a impressão que isto dá muito mais trabalho do que desejar intensamente que nova capacidade apareça miraculosamente do nada.

P.S. Agradeço a Márcio Garcia e Jankiel Santos que notaram um erro de digitação importante na versão original que, se mantido, teria afetado a compreensão do argumento.

(Publicado 6/Mai/2010)

25 thoughts on “À espera de um milagre

  1. Lendo seu post, me ocorreram duas questões:
    1) Nos seus estudos, você observou se a defasagem entre o investimento e a criação de capacidade vem diminuindo ao longo dos anos?

    2) Por que o nível de investimento em cerca 18% poderia ser considerado “pouco”? Em nada contribuiu o processo de privatização em termos de redução de desperdício e roubalheira (a gatunagem estimo continue a todo vapor) que certamente inflaram os números do investimento por muito tempo no Brasil ?

    Congratulations pelo trabalho.

  2. "Acho que fiquei afastado tempo demais. Agora é difícil voltar."

    De maneira alguma! Num mundo acadêmico no qual parte relevante quer se fazer de Levitt (e publicar, como livros de loja de aeroporto, traduções de papers supostamente "bonitinhos"), há um espaço enorme para quem se preocupa com questões sérias.

    Volte!

  3. Artigo realmente mto bom. Parabéns Alex!

    Não sei se vcs chegaram a ver o comentário do Oreiro no Caderno de Economia do Estadão (25/04, Domingo – título: "Discussão de fundo é sobre ritmo sustentável de crescimento"):

    "Se a economia crescer, durante alguns períodos acima de seu potencial, o que vai acontecer a médio prazo é que o produto potencial sobe."

    Contudo, vejam bem, ele faz um alerta:

    "Não se pode forçar demais para evitar provocar muita inflação no curto prazo".

    está dada a aula!

    Abs, Lucas

  4. Professor, o que voce quer dizer com "crescimento não é sustentado"?

    Por acaso a demanda vai bater na restrição de capacidade e isso vai gerar inflação em algum momento?

    Se for isso, a inflação seria o freio para um crescimento sustentado?

    Ou então, a demanda crescendo muito acima da oferta nos levará a um problema de balanço de pagamentos?

    Ou os dois juntos?

  5. Caro Professor Alex, faço parte do grupo dos seus leitores que não tiveram treinamento em Economia. Eu fico intrigado quando é posto que a defasagem entre investimentos e consumo determinam a inflação. Vcs não consideram que o estado de espírito "bull"/"bear" do consumidor permita o produtor a aumentar/diminuir o preço dos seus produtos? Tenho observado que os consumidores brasileiros estão na categoria "bullish" extremada neste momento! E isto me parece ser o aspecto mais relevante para determinação da inflação do que a ocupação da capacidade instalada x vendas neste momento.
    C. Evora

  6. Cesar, se me permite tentar tocar alguns pontos…
    Quando se trata de estruturas de mercado oligopolizadas, a perspectiva de um empresário em relação à reação de seus concorrentes produz uma "curva de demanda quebrada": a idéia é que, caso ele aumentasse os preços, seus concorrentes não o fariam e ele perderia mercado; caso baixasse os seus, seus concorrentes também o fariam e ele não teria um ganho substancial de mercado. Isso torna o preço, em estruturas de mercado oligopolizadas, rígido.
    Com essas informações, você não considera que ajustar preços unilateralmente de acordo com o "estado de espírito" de seus consumidores pode ser arriscado e irracional ?
    A idéia é (penso eu) que, para a aceleração se acelerar, os empresários inseridos nesse tipo de estrututa de mercado necessitam de um estímulo simultâneo para tal. Aí entra a demanda em expansão, pressionando todos os produtores e forçando a expansão do NUCI (talvez até um ponto que diminua a eficiência produtiva, em relação ao custo unitário médio).

    Alex, você escreveu um outro post em que sugeriu que a taxa de ocupação da capacidade instalada que acelerava a inflação era de 88,6% se não me engano. Qual o grau de preocupação com o NUCI chegando a 85% no próximo trimestre, possibilidade que você aponta.

    Abs

    JA

  7. "Taxa de Câmbio Real, Acumulação de Capital e Crescimento no Brasil" – Barbosa, Nelson.

    Sai uma resenha, 'O'?

    O número mágico, segundo o estudo, é R$/US$ 2,264…

    Doutrinador

  8. A Secretaria de Política Econômica saiu de Marcos Lisboa para Nelson Barbosa… Quanta diferença. É por isso que o Brasil passou a crescer muito mais.

  9. Já que o O me ignorou, segue um site divertido ao menos:

    http://robertvienneau.blogspot.com/

    Alguns comentários que rolam por lá (não tive saco de traduzir):

    First, there are indeed plenty of theories of income distribution in the post-Sraffian/post-Keynesian literature that do not assume that wages are exogenously determined. Rather, they tend to assume that the interest rate is exogenously determined, in the sense that the supply of credit always adjusts to meet the demand at a given interest rate; i.e., the level of "savings" is a red-herring since a constant stock of savings can service any level of credit. And the interest rate does not ration "capital": the price of capital goods does that. But Keynes told us this years ago.

    Second, it is easy to accept that the conditions in the labor market affect a wage/unemployment trade-off without in the least buying in to the idea that the solution to unemployment and/or an increased scale of production requires low wages. That's because, in post-Keynesian models, equilibrium is often defined as a "monetary equilibrium" in which the aggregate distribution of income between wages, interests and profits is determined by monetary variables, such as the interest rate policy and propensities to spend nominal income. In these models workers do not necessarily consume all their income. In other words, the frontier of the wage/unemployment trade-off is determined outside, and logically prior to, the conditions in the labor market. High interest rates is then a fundamental cause of unemployment and low growth: it's the financial rentiers who are throttling back the economy.

    However, this is a complex area, and I do not wish to argue for any particular position. But I do want to point out that there are clearly superior alternatives to marginalism in the context of theories of income distribution. In fact, I am non-plussed that by the suggestion that marginalism is the only game in town, given its well-known internal incoherence (capital controversies) and its well-known ideological and apologetic content.

  10. "A idéia é que, caso ele aumentasse os preços, seus concorrentes não o fariam e ele perderia mercado; caso baixasse os seus, seus concorrentes também o fariam e ele não teria um ganho substancial de mercado. Isso torna o preço, em estruturas de mercado oligopolizadas, rígido."

    JA, onde V. aprendeu Teoria dos Jogos/Organização Industrial? No Grupo Oficina do Zé Celso?

    Competidores em modelos-padrão de mercados oligopolizados (e.g., Cournot e Betrand) quantidades /ou preços dos concorrentes como dados e decidem o que fazer DADOS aqueles objetos (V. é daqueles que prefere o conceito de conjecturas variacionais a equilíbrio de Nash, né. Vá montar o Rei da Vela, amigo!). A menos que a demanda dos consumidores (por algum catzo de razão que não faço ideia) seja quebrada, a demanda residual com a qual um produtor se depara não será quebrada!

    Para uma justificativa formal de rigidez de preços baseada em cartelização, ver Athey et al (2002, RESTUD. Collusion and Price Rigidity." http://kuznets.fas.harvard.edu/~athey/cpr.pdf)

  11. Anônimo:

    parece interessante esse texto que você indicou…
    o "se me permite" que introduziu meu comentário era devido ao pouco crédito que deve ser dado aos meus comentários, visto que sou apenas um estudante de graduação (aliás, os seus seriam muito mais persuasivos se não viessem carregados de tanta ironia. só uma sugestão)
    A cadeira de Economia Industrial (ou Organização Industrial) estou cursando agora. As fontes de onde tirei minhas informações: Carlton & Perloff. Modern Industrial Organization, cap 2. Koutsoyannis, Alice. Morden Microeconomics, cap 4
    Vale Olhar o Richard Caves também. "Organização Industrial Americana" caps 2 e 3

    Abs

    JA

  12. "o "se me permite" que introduziu meu comentário era devido ao pouco crédito que deve ser dado aos meus comentários, visto que sou apenas um estudante de graduação (aliás, os seus seriam muito mais persuasivos se não viessem carregados de tanta ironia. só uma sugestão)"

    Ja, meu caro, algumas sugestões: (i) nunca use "se me permite alguns comentários": todos os comentários são permitidos. It is all about ideas; (ii) o fato de V. ser aluno de graduação não lhe desqualifica para qualquer que seja a discussão! Assim como qualquer título não qualifica a priori ninguém. Nunca se constranja ou se intimide pelo fato de ser um aluno de gradução. Todos fomos/somos/seremos um dia. Em geral, os alunos são bastante mais inteligentes do que os economistas que lhes ensinam. (iii)a ironia não teve intuito agressivo. Só pensei tratar-se de alguém com interesse em OI com algum viés heterodoxo. Como não há linguagem metodológica comum entre caras de OI mais mainstream e heterodoxos, usei de ironia, que é a linguagem comum dos canalhas. Não me leve a mal. (iv) o Carlton é do cacete, mas meio velha guarda. Procure pelo livro do Luis Cabral. (v) continue com interesse por micro e Jogos. Para qualquer coisa que venha fazer (macro, inclusive), lhe será útil. (vi) sou fã do Zé Celso. Tome a ironia como um provocação elogiosa.

    Suerte,

  13. Now we're talking =D
    obrigado pelos conselhos.
    minha área de interesse é macro/monetária mesmo, mas OI me saltou aos olhos também quando começamos a estudar agora…

    Agora voltando à discussão:
    Alex, li este seu post e uns dias antes, nesta semana mesmo, o Loyola escreveu um artigo no Valor sobre a suposta esquizofrenia de conciliar o sistema de metas de inflação com a expansão de crédito dos bancos públicos. Aí comecei a juntar os 2 argumentos. Cheguei nas seguintes considerações:
    A expansão de crédito hoje é expansão de demanda, no futuro (6 meses, digamos, como você estima) é expansão de capacidade instalada. Portanto é inflacionária hoje, porém minimiza a pressão sobre o NUCI no futuro (ao menos relativamente ao cenário que teríamos sem tais investimentos). Então cabe analisar os ônus e bônus de tais políticas: temos o ônus da inflação hoje, mas, será que num horizonte temporal relativamente próximo não poderíamos ter como consequência um crescimento maior E sustentável com inflação controlada ? A chave aqui me parece ser qual a capacidade de trazer para baixo as expectativas de inflação após um suposto "ciclo de investimentos"…
    Fica aí o pensamento…

    JA

  14. Alex, o crescimento elevado na produtividade nao retira a força do argumento do NUCI?

    Se a produtividade cresce, a capacidade instalada pode estar proxima ao limite, mas o produto por maquina ou por trabalhador aumenta…

    qual sua opiniao?

    Além disso, tem outra medida de NUCI que nao o da Fundaçao e CNI???

  15. Esse último comentário me fez lembrar de outro ponto…
    Estavam me explicando as deficiências do NUCI. Como a explicação foi bem breve, não peguei os detalhes, mas parece que o NUCI superestima variações da utilização da capacidade instalada. É isso mesmo? Como fica esse ponto ?

    Abs

    JA

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