Na Câmara dos Deputados havia um homem chamado Inocêncio de Oliveira. Sempre foi muito gentil comigo. Morreu há algum tempo; Deus o tenha.
Mas era um nome singular e nos inspirou uma antítese para definir pessoas muito suspeitas: Culpâncio de Oliveira.
Lembrei-me disso quando vi Onyx Lorenzoni defender o governo, ameaçando testemunhas, dizendo que é diferente de tudo o que aconteceu nos últimos 40 anos e representa o bem contra o mal.
Há alguma coisa errada nessa compra da Covaxin, do preço às condições do contrato e, sobretudo, a maneira como o governo reage às suspeitas de corrupção.
Considero o negacionismo, que contribui para milhares de mortes, algo muito mais grave que a corrupção. Admito, no entanto, que desvio de dinheiro é mais facilmente reconhecível.
Com bons advogados, uma lei branda e juízes garantistas, não é fácil punir governantes por corrupção. Mas o impacto político é inevitável e, no caso de Bolsonaro, pode significar a gota que faltava para que a proposta da extrema-direita seja reduzida às suas reais dimensões.
É uma tarefa do cotidiano levantar as estranhezas dessa compra de vacinas. O governo diz que a nota fiscal que cobra US$ 45 milhões é falsa. A empresa afirma que não é falsa, houve apenas um engano.
Quem se engana numa nota de US$ 45 milhões pode se enganar nos mandando vacinas contra a febre amarela destinadas ao Equador.
Mas é preciso olhar um pouco mais longe. À medida que o governo decai, a sociedade precisa ocupar um espaço maior, discutir os caminhos.
Perdido num labirinto de desculpas esfarrapadas na pandemia, o governo seguirá destruindo a Amazônia, dizimando as populações indígenas.
As manifestações de rua podem crescer e representar uma ampla frente nacional, pois só uma força dessa dimensão consegue abalar de vez o edifício obscurantista.
O pós-Bolsonaro não será apenas isso, pois coincidirá também com o fim da pandemia. Sairemos de uma terra arrasada, e essas situações, às vezes, como no fim da Segunda Guerra, contribuem para o surgimento de novas ideias.
O combate às desigualdades sociais renasce com grande força. Mas outros temas nos esperam e não podem ser resolvidos apenas com a experiência. A sustentabilidade é um deles, uma vez que a crise ambiental se aprofunda e projeta uma posição de destaque para o Brasil.
A digitalização também estará muito acentuada, abrindo caminhos e cavando novas crises. O centro das grandes cidades, de um modo geral ocupado por escritórios, terá de ser reinventado, pois o home office poderá torná-lo um grande deserto.
Na verdade, há toda uma agenda complexa nos esperando, mas é importante que seja pelo menos esboçada. A existência de uma ampla frente não só nos ensina a superar o governo da extrema-direita. Ela é também essencial quando se pensa em governar o Brasil com um mínimo da estabilidade que nos faltou em muitos momentos da redemocratização.
Por que falar de futuro num presente tão nebuloso? É sempre bom ter algo em mente, sobretudo porque a superação do bolsonarismo não significa que tenhamos resolvido os problemas que lhe deram a oportunidade de ascender.
Desde 2013, o Brasil manifesta uma profunda desconfiança no desempenho de seu governo. Além disso, o processo econômico tem deixado muita gente para trás. Voltada apenas para eleições, a elite política não ouve com atenção pessoas comuns no seu cotidiano.
Se não pensarmos em reconstruir essa estrada, estaremos apenas superando Bolsonaro, deixando aberta uma senda para novas ofensivas autoritárias no Brasil.
É uma das lições de casa, após esses anos de obscurantismo. Muito se diz sobre como morrem as democracias, a partir da decadência das instituições. Mas todos sabemos que, sobretudo, morrem quando o povo se coloca contra elas.
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