Escorregão ou convicção? Por Josué Machado
ESCORREGÃO OU CONVICÇÃO?
Por Josué Machado
Há casos em que o sujeito desliza para um lado, e o verbo escorrega para outro. E não por falta de fé.
Em seu belo texto em forma de conto, “Hinos da harpa”, o escritor e articulista começa:
“Na próxima sexta-feira é dia de santa ceia. Muita gente dos três morros participam do culto. Sim, muitas orações…”
Pois é: “Muita gente … participam…”, escreveu ele.
Em princípio, parece difícil saber se usou a concordância extravagante por convicção, considerando a evidência de que “muita gente” transmite claramente a noção de plural e por isso deveria pluralizar o verbo, ou se, distraído, desviou-se por acidente da concordância ortodoxa em que o predicado concorda em número e pessoa com o sujeito. Núcleo do sujeito no singular, verbo no singular; núcleo do sujeito no plural, verbo no plural. Deveria ser, então:
“MUITA GENTE dos três morros PARTICIPA do culto.”
Isso porque qualquer autor, por reconhecido que seja, sabe que deve evitar toques pessoais exagerados e tomar liberdades em relação à norma culta num jornal de generalidades para não causar estranheza.
Uma construção como a que ele usou – “MUITA GENTE … PARTICIPAM” nem se assemelha àquela em que o sujeito é representado por expressões partitivas: a maioria, a maior parte, o menor número, grande quantidade e outras. Tais expressões levam o verbo para o singular:
“A MAIORIA dos políticos brasileiros É excelente e confiável. É sim, se é.”
Com essas expressões, no entanto, quando se quer destacar a ideia de conjunto, o verbo também pode ir para a terceira pessoa do plural, concordando com o modificador plural do núcleo do sujeito:
“A maioria DOS POLÍTICOS brasileiros SÃO excelentes e confiáveis. Sem dúvida.”
Nenhuma semelhança, portanto, com o trecho destacado da crônica. De modo que se pode concluir que foi escorregão mesmo. Talvez resultante da pressa. Tais acidentes acontecem quando se modifica a estrutura do texto: mexe-se no começo ou no fim de uma frase ou período e esquece-se de fazer a adequação das unidades ao conjunto. Ou melhor, como em geral se lê em blocos de palavras, algumas delas escapam inadvertidamente do filtro da releitura.
O que parece é que ele se deixou levar pela expressão “dos três morros”, modificadora do núcleo do sujeito, e continuou embalado, navegando alegremente no plural solene das gentes do culto e da santa ceia.
Quase como esses juízes do STF, que se deixam levar pelo bem-bom da vida boa e escorregam na terminologia maravilhosa das palavras vazias.
Coisas da vida.
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Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade