Saudades dos anos 80

Eu até poderia me surpreender, mas, como economista trabalhando no Brasil há mais tempo do que quero confessar, sinto que não tenho este direito. Mesmo assim, quando líderes empresariais vêm a público pedir o fechamento da economia brasileira às importações, bate uma sensação que beira a desesperança. Depois de anos de uma bem-sucedida (ainda que limitada) experiência de aumento da integração comercial do país, resta ainda quem abertamente defenda o retorno à situação que vivemos por mais de 50 anos, cujos resultados foram estagnação da produtividade, baixo crescimento e elevação da concentração de renda.

O caso mais patológico foi, é claro, a malfadada política de reserva de mercado para informática, proposta por expoentes da corrente ironicamente autodenominada “desenvolvimentista”, que gerou uns poucos ricos às expensas de consumidores e empresas obrigados a pagar por produtos de baixa qualidade preços muito superiores aos praticados no exterior.

Todavia, este é apenas o exemplo mais doentio do caso do amor da indústria nacional com o protecionismo. Há meros 20 anos as importações equivaliam a 5,5% do PIB, dos quais quase a metade correspondia a petróleo e derivados, cuja produção doméstica era insuficiente. Sob tais circunstâncias, os incentivos para inovação eram mínimos e, consequentemente, o crescimento da produtividade foi medíocre, quando não negativo.

Dado, porém, que é precisamente o aumento da produtividade o fator crucial para a expansão sustentada do produto ao longo de muitos anos, também não se estranha o baixo dinamismo da economia brasileira por mais de 20 anos, que coincidiu, não por acaso, com o fim do processo de urbanização do país.

Por fim, a restrição às importações também permitiu a elevação das margens de lucro dos setores protegidos, cuja contrapartida é a redução do salário real. Posto de outra forma, a proteção beneficiou os setores intensivos em capital, implicando elevação do retorno sobre este à custa da redução do rendimento do trabalho, ou seja, maior concentração de renda.

E é a este estado de coisas que alguns pretendem retornar, justificando, para tanto, que a elevação das importações teria prejudicado o crescimento da produção local. Isto no contexto de elevação da produção industrial superior a 16% e um provável aumento do PIB na casa dos 9% na primeira metade do ano.

De fato, caso nossas projeções para as contas nacionais estejam corretas, a demanda doméstica deve ter crescido cerca de 10% no primeiro semestre, ou um pouco mais que R$ 150 bilhões (a preços de 2010). Já as importações medidas em reais, deduzindo combustíveis, cresceram (também a preços de 2010) em torno de R$ 35 bilhões, um aumento de 30%, valor consistente com a experiência dos últimos anos. Em outras palavras, mais de três quartos do crescimento da demanda doméstica foram atendidos pela produção local.

Isto se traduziu em forte redução da ociosidade na economia. No segundo trimestre deste ano, por exemplo, o nível de utilização de capacidade na indústria atingiu 82,7%, nível superado, por pouco, apenas no período entre o quarto trimestre de 2007 e o terceiro de 2008. Já a taxa de desemprego caiu abaixo de 7% no último trimestre, o valor mais baixo da série. Ambas as observações sugerem que a economia se encontra bastante próxima ao seu limite e que, portanto, as importações desempenham papel crucial para complementar a oferta doméstica num quadro de elevada demanda interna.

Se isto é verdade, o que poderia explicar este acesso de nostalgia? Quero crer que não seja um caso de sadismo, que sente saudade da estagnação e da queda do salário real. Provavelmente, não deve ser mais do que a percepção que as importações limitam bastante o poder de certas indústrias de impor seus preços; é ruim para seus lucros, mas muito bom para o Brasil.

O Conselho da Fiesp em momento descontraído (mas, se pensar em protecionismo, por favor, se reprima)

(Publicado 18/Ago/2010)

34 thoughts on “Saudades dos anos 80

  1. Ouvir dizer que os sacoleiros do Paraguai estão aplaudindo o Steinbruch (alguém quer um videocassete?). Eles também estão com saudades dos anos 80.

    Mas a redução das importações não poderia apreciar ainda mais o câmbio, o que tornaria mais atrativo importar? E aí você terminaria tendo de fechar toda a economia? Quando acaba? Começa fechando para proteger, mas como não vai ter inovação, terão de manter o fechamento para não quebrar geral depois.

    Será que o fechamento da economia irá durar até formar toda a mão de obra necessária? ("Está faltando mão de obra, estamos colocando escola dentro do canteiro de obra, fazendo o que podemos para formar gente, algo que é um limitador do crescimento brasileiro.")

    Câmbio desvalorizado e protecionismo irão criar o ambiente de inovação e competição, bem como a a mão de obra qualificada, necessários ao país? Que mágica é esta?

  2. Até que enfim uma análise de macho, colocando o dedo na ferida e dando nome aos bois, como é corriqueiro nos EUA e na Europa.
    Estamos em um momento crucial da história, e devemos ser duros para evitar que a máfia dê as cartas no Brasil. Se isso ocorrer, caminhamos para nos tornarmos uma China.

    Os empresários brasileiros não valem nada, e os banqueiros nunca valeram, mas com exceções. Agora phoder com o país inteiro é demais.

  3. Ótimo post extraordinariamente escrito por um economista "de direita". Pelo visto, já não se fazem economistas "de esquerda" como antigamente.

    Em 1848 os fundadores do socialismo científico publicaram o Manifesto Comunista, o qual se tornou referência obrigatória para os comunistas e sociais-democratas nas décadas seguintes e durante todo o século XX. "Nas antigas", era muito citada a famosa passagem referida ao "comitê executivo da burguesia":

    “A burguesia, desde o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou finalmente a soberania política no Estado representativo moderno. O Governo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia”.

    No poder, $essi aggiornarono$. 🙂

  4. Em tempo

    Luciano Coutinho, em entrevista ao ESP em 17/07/2010, ao ser indagado sobre a transparência do custo dos empréstimos do Tesouro e sobre a quanto chegava essa conta, declarou: “a impressão que temos é que o resultado fiscal líquido da atuação do BNDES é positivo. Estamos fazendo essas contas e vamos apresentar EM BREVE”.

    http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,nao-ha-risco-de-descontrole-fiscal-no-brasil,27877,0.htm

    Desde o dia 17 de julho até hoje são passados 32 dias. E aí? Alguém teve alguma nova notícia a respeito das contas do BNDES?

    Em 14 de agosto de 2010 o ministro Mantega é citado em reportagem do jornal ESP e ficamos sabendo que ele já teria determinado “à área técnica um estudo detalhado sobre o cálculo dos subsídios […]. O estudo dará transparência desse custo não apenas em relação à linha de crédito de R$ 124 bilhões do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) do BNDES, mas também do empréstimo de R$ 180 bilhões. […]

    O problema maior, segundo fontes [provavelmente, fontes do Ministério da Fazenda], é que para fazer o cálculo do subsídio explícito do empréstimo de R$ 180 bilhões, em duas partes – R$ 100 bilhões em 2009 e R$ 80 bilhões este ano -, o governo não pode simplesmente usar como base a diferença entre o valor da TJLP (que corrige o contrato dos dois empréstimos) e da taxa Selic de hoje.”

    http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100814/not_imp594842,0.php

    Então até o momento (18/08/2010) estamos assim: Luciano Coutinho e sua “impressão” de um resultado positivo e Mantega, “segundo fontes”, sugerindo na reportagem do Estadão que fazer esses cálculos é muito complicado.

  5. A reportagem/entrevista feita pelo Valor Econômico c/ o "Benja" é um típico exemplo de: "que babaquice! quanta asneira!"
    Tudo bem, fazer o quê?, Dilma é candidata! Brasiililililil!
    Brados
    Martins

  6. Gostei do artigo. Agora faço algo chato. Essa história, com dados, números, eu encontro em alguma obra de fácil acesso, ou só lendo coleções de papers de revistas americanas com desembolso do dim-dim? No mercado nacional não tem nada que relate isso aí em maiores detalhes?

  7. Muito interessante seu comentário. Só dei falta na ênfase de que, num mundo com taxas de câmbio flutuante, preocupações extremadas com importações seriam descabidas. Uma outra observação é quanto a natureza do modelo econômico: manutenção de empresários que ancoram suas decisões de investimento no BNDES e congeneres acaba por gerar industrias que recorrentemente se valem de produtos importados. A industria naval, revivida pelo governo Lula, é o exemplo típico. Ela é agora de 8 geração, porque foi integralmente importada com grana barata ou quem sabe doada. Quero crer que os limites de importação continuarão valendo para tudo que não se relacione ás industrias cartoriais. É muito bom quando temos um blog que berra pelo ambiente competitivo – única saída para economias favelizadas.

  8. Já faz algum tempo venho falando que estamos voltando aos anos 70. Economia crescendo em meio a recessão mundial, grandes obras públicas, Brasil potência, BNDES como indutor do crescimento e etc Estava faltando a volta do protecionismo, não está mais.

    O que me deixa mais desesperado é que não temos saída aparente, a oposição as vezes parece ser ainda pior que o governo, vejam isto:

    "O candidato do PSDB à Presidência da República, José Serra, criticou hoje a política de comércio exterior do Brasil que, segundo ele, permite a “invasão” de produtos subfaturados da China e prejudica o emprego no País. Em discurso a diretores da Fundação Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos), em São Paulo, Serra prometeu que, se eleito, mudará essa situação em dois meses. O tucano atacou também a política econômica do governo Lula. “Falta uma política econômica eficiente. Sobrevaloriza-se a taxa de câmbio de uma maneira que a importação é incentivada artificialmente e é retirada a competitividade da exportação também artificialmente”, afirmou. “Eu estava dizendo para o Synésio (Synésio Batista da Costa, presidente de Abrinq) que, chegando ao governo, em dois meses nós vamos resolver esse assunto.”"

    Tristes tempos. Será que na Colômbia tem emprego para professor de macro?

    Abraço,

    Roberto

  9. Para estes casos de amnésia, vale a pena voltar ao mestre:
    * "A sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade irá terminar sem igualdade e liberdade". (Milton Friedman)
    Ou então de Hayek: "Qualquer alternativa de controlar os preços ou as quantidades desta ou daquela mercadoria impede que a concorrência promova uma efetiva coordenação dos esforços individuais, porque as alterações de preço deixarão assim deregistrar todas as alterações importantes das condições de mercado e não mais fornecerão ao indivíduo a informação confiável pela qual possa orientar suas ações."

  10. Alex,

    Acompanhei sua palestra hoje na FEA e fiquei bastante interessado pelo paper citado que mostra números razoáveis para os gastos em investimentos públicos federais em relação ao PIB. Se não me engano, o autor tem vínculo com o IPEA e lembro de você ter dito que era um "trabalho de formiguinha". Como estava em pé no fundo da sala, não consegui anotar o nome do autor e o título da obra. Você poderia me passar essa referência, por favor?

    Abs
    Caio Machado

  11. Alex, vc pode esclarecer sobre este paper, pf.

    ao se considerar os investimentos das estatais (a maioria de capital misto) como investimento público, todo o balanço das empresas deve entrar nas contas nacionais, é assim q funciona?

  12. Eu achei bem estranho esse texto do Gobetti. O investimento das estatais não deveria ser computado como investimento publico, por principio.

    Investimento publico deve ser aquilo que se soma ao estoque de capital publico. Uma ponte sim; uma plataforma da Petrobras não.

  13. "O". Pelo que eu entendia, investimento da Petrobras em plataforma não entraria como gasto público, o que entraria seria o governo entrando com capital novo para a Petrobras.
    Alguém sabe como isso é contabilizado aqui no Brasil?

  14. Nem uma coisa, nem outra.

    A Petro está fora das contas públicas. Quando era incluída seus investimentos contavam para fins de apuração do resultado fiscal do setor público (NFSP).

    Capitalização de empresas estatais , por outro lado , não aparece do déficit (fluxo), embora apareça na dívida (estoque), como, por exemplo, as capitalizações de BB e CEF em 2001 (2000).

    Isto dito, concordo com o "O". Investimento público é aquele que serve para provisão de bens públicos. Plataformas de petróleo não servem para isto. Energia elétrica, embora essencial (como comida é essencial não é bem público também.

    Uma rua é um bem público (embora possa ser um bem rival, em caso de congestionamento). Segurança é um bem público. Tribunais idem.

  15. Alex,

    Não assisti à palestra da FEA; fiquei sabendo aqui pelo Blog. Sobre a apresentação, não a achei no site da FEA nem no site do depto de Economia.

    Se possível, coloque o link aqui.

    Acho que relacionado a esse seu último artigo, poderíamos discutir a relevância ou não da chamada 'Economia Industrial'. Eu, pelo menos, vejo esse pessoal de Economia Industrial com um discurso batido, desatualizado e sem evidências empíricas.

    Até,
    Eduardo.

  16. "Bem publico" e' tudo aquilo em que o estado gasta dinheiro para torna-lo sua propriedade. Paremos pois de torcer pepinos para servir a propositos ilusionistas. Da mesma maneira que um "bem corinthiano" consiste em ativos comprados por aquela agremiacao no interesse manifestado pela decisao dos representantes dos seus associados.

  17. Careca você esta errado.O protecionismo ajudou o Brasil a ter um PIB industrial alto.Com a abertura nos anos 90 o PIB industrial caiu.

    Em 86 a Industria representava 43% do PIB.Hoje ela representa 25% do PIB.A abertura comercial desindustrializou o Brasil.

    Lucrécio

  18. Meus caros,
    Outra questão bastante relevante (que se confunde com este debate sobre a TFP) se refere aos preços relativos dos bens de capital. Fechar a economia pode elevar estes, fazendo com que, mesmo com uma taxa de investimentos a preços correntes ser alta, vermos esta taxa a preços constantes declinar, diminuindo a FBKF no país.
    Um grande abraço.

  19. infelizmente a força dominante não se contenta com os grandes lucros e o sistema lhe tem proporcionado. Graças às mudanças no mundo dos negócios, vinda com a globalização, esta cultura inflacionária que o brasileiro estava acostumado, e o mercado produtivo produzindo apenas para o consumo interno e o descaso com o consumidor, oferecendo produtos com altos custos e sem um mínimo de qualidade, hoje que ficou no retrovisor da economia, já morreu

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