A desgraça como aleg(o)ria. Por Marli Gonçalves
A DESGRAÇA COMO ALEG(O)RIA
MARLI GONÇALVES
Vou tentar fugir do pode não pode, do skindôlelê. Tudo pode. O “É Proibido Proibir” ecoou bonito como tema em vários blocos de rua este ano. Mas há de se pensar muito quando a “solução” das terríveis situações em que vivemos são saudadas como espetáculos desfilando em escolas de samba e em tropas do Exército nas ruas
À base de Bic`s ou Montblancs. Decretação de Intervenção Federal na segurança do Rio de Janeiro. Decretação de calamidade social em Roraima. De canetada em canetada, de pulo em pulo, de reunião em reunião, de declaração em declaração vai se tentando resolver as mazelas do país da forma mais desorganizada. Aos soquinhos. A última foi a extrema de botar general no comando geral da PM e o Exército nas ruas do Rio de Janeiro: o presidente Michel Temer deixa claro que não gostou nadica dos desfiles onde apareceu como, digamos, destaque.
A alegoria de mão virou, então, a caneta dos decretos. Preparem-se, outros Estados! Receberão baciadas de venezuelanos refugiados para darem um jeito. E certamente receberão, com a mala e a cuia na mão, além do fuzil, claro, os líderes meliantes cariocas vindos refugiados dos morros e matas. Quando o Morro do Alemão foi tomado há alguns anos, bandido correndo para tudo quanto é lado, a região metropolitana de São Paulo foi aprazível morada onde vários deles se fixaram.
Mas o que importa, não é mesmo? Além da imagem, da cara de bravo, frases bonitas, da imponência do discurso cheio de metáforas anunciando “restaurar a tranquilidade do povo”. “Nossos presídios não serão mais escritórios de bandidos, nem nossas praças continuarão a ser salões de festa do crime organizado. Nossas estradas devem ser rotas seguras para motoristas honestos”, disse Temer, sem corar, do alto do pedestal.
Oi? Uai, a tal intervenção não é só no Rio de Janeiro?
Aí reside o perigo. Se a população que nessas primeiras horas estou vendo aplaudir a medida – até porque o povo carioca vivendo uma guerra insana se agarrará a qualquer coisa – der boa mídia – o Exército que se vire. Podem ser chamados para preencher outros buracos nacionais de poder, de incompetência, de desmandos. Até porque ou haverá uma chacina, ou os “elementos” se espalharão. Prender não tem onde. Já há sérias dúvidas de como os soldados irão comer, onde dormirão, essas coisinhas básicas.
O que irrita é que a falta de planejamento das medidas, da ordenação social, do desenvolvimento das cidades é tão comum que acabamos nos acostumando a arroubos em crises. Seja na segurança perdida, no transporte público travado, nas tragédias sem amparo.
O maniqueísmo culpa a imprensa. Duas cândidas escolas de samba do Rio batem no peito como vitoriosas porque botaram na avenida o que o ano inteiro passou diante dos nossos olhos e ouvidos, e, destaque-se, pela imprensa – assaltos, arrastões, tiroteios e balas perdidas, protestos e muitos etcs –esqueceram que elas próprias são dirigidas por meliantes que incentivam tudo isso. O governo seguiu o exemplo. Botou os soldados em marcha e anuncia que – ah, agora vai! – também vem por aí mais um Ministério! Da Segurança Pública. Dado o nível dos atuais ministros e indicações, só mais umas vagas abertas para negociações.
Tudo isso me lembra muito um problema que estou às voltas: formigas, formiguinhas. Pequeninas, andam em todos os cantos, menos onde poderiam ser pisadas. Impossíveis de serem contidas. Se abandonam um lugar, daqui a pouco surgem em outro local, sempre inusitado, birrentas, num organizado desfile e muita união.
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Marli Gonçalves, jornalista. Oh pátria amada, por onde andarás? Seus filhos já não aguentam mais! – dizia o refrão que tantos cantaram atrás de um beija-flor
marligo@uol.com.br/ marli@brickmann.com.br
SP, 2018