Contabilidade criativa e autoengano
É arriscado escrever algo sobre o assunto depois que Mansueto Almeida descreveu nestas páginas as exéquias do superávit primário, mas neste caso a indignação supera o receio da comparação com o excelente artigo publicado há uma semana. Refiro-me, é claro, à divulgação do desempenho fiscal do governo federal em setembro, que, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, teria registrado saldo pouco superior a R$ 26 bilhões, constituindo-se assim no maior da série histórica iniciada em 1997.
O futuro do pretérito se aplica porque tal resultado não reflete, na verdade, um esforço fiscal do governo, mas um surto de contabilidade criativa que trata um aumento do endividamento como se fora crescimento da receita.
De fato, como se sabe, o superávit recorde resulta da contabilização da cessão onerosa (“venda”) de 5 bilhões de barris de petróleo por R$ 75 bilhões, dos quais R$ 43 bilhões foram utilizados para a aquisição das ações da Petrobrás em oferta pública. A diferença, R$ 32 bilhões, foi incorporada ao saldo do superávit primário do mês. Note-se que, sem esta “receita” extraordinária, o resultado primário do governo federal teria sido negativo em quase R$ 6 bilhões, a despeito do crescimento fenomenal da arrecadação.
A cessão onerosa significa que o governo antecipou as receitas que proviriam da exploração futura dos campos petrolíferos do pré-sal, operação que não difere, em sua essência, da emissão de títulos públicos federais. Com efeito, neste último caso o governo antecipa receitas tipicamente associadas à arrecadação de tributos, enquanto no caso anterior obtém hoje as receitas que apareceriam alguns anos à frente, em ambos os casos onerando as próximas gerações. Apesar disso, a emissão de títulos é contabilizada como dívida, enquanto a cessão onerosa foi tratada como receita.
Não bastasse isto, parcela da “receita” oriunda desta operação veio do BNDES, que, para pagar ao Tesouro Nacional, obteve recursos do… Tesouro Nacional! Impossível não lembrar da velha anedota em que dois sócios num bar venderam um ao outro todo o estoque de bebidas, contabilizando a carraspana como lucro.
Na prática, portanto, o que se observa é uma contínua piora do desempenho fiscal. Se ainda era possível explicar a redução do superávit primário em 2009 pela combinação da queda da arrecadação (devida à recessão) com políticas supostamente anticíclicas, hoje não resta dúvida que vivemos uma expansão fiscal quase sem precedentes. O gasto federal real tem crescido a uma velocidade superior a 10% ao ano na comparação com 2009, mesmo contra um pano de fundo de crescimento vigoroso do produto, deixando claro que a política fiscal não guarda qualquer relação com o ciclo econômico (se guardasse, deveríamos observar agora forte redução das despesas).
Como sabe qualquer um que tenha lido (e não apenas colorido) um livro básico de macroeconomia, uma expansão fiscal desta magnitude tem impactos consideráveis sobre a demanda doméstica. Aliás, não é por outro motivo que cansamos de ouvir no ano passado que o aumento do dispêndio se justificava para evitar que a economia mergulhasse numa recessão. Curiosamente, quem fazia este argumento à época afirma agora que o gasto público não afeta a demanda. A menos, porém, que isto queira dizer que política fiscal expansionista só tenha efeito sobre a demanda nos anos ímpares, é simplesmente impossível conciliar essas duas afirmações.
Isto dito, as implicações para inflação, taxas de juros e taxa de câmbio são bastante diretas. Gastos mais elevados significam que a demanda interna cresce mais rápido do que ocorreria sem tal aumento. Numa situação de relativa folga (desemprego alto e baixa utilização de capacidade) o crescimento da demanda se materializa em expansão do produto, mas, à medida que os gargalos no mercado de trabalho, infraestrutura e de capacidade começam a se manifestar, as pressões inflacionárias aparecem e eventualmente levam o Banco Central a praticar uma política monetária mais apertada do que a que prevaleceria sob uma política fiscal mais austera.
Inclusive, se resta ainda quem duvide que estas considerações façam parte do processo de decisão de política monetária, sugiro apenas a leitura do parágrafo 25 da última ata do Copom, onde se lê que “[a] convergência [da inflação] está condicionada à materialização das trajetórias com as quais o Comitê trabalha para variáveis fiscais e creditícias, entre outras”. Em “bancocentralês” é difícil mensagem mais explícita.
Entretanto, se a taxa de juros é mais alta, também a taxa de câmbio deve ser mais apreciada. Obviamente, há outros elementos afetando simultaneamente a taxa de câmbio (dentre os quais os preços de commodities e o valor global do dólar são particularmente influentes), mas, independente disso, pode-se afirmar que, dados os demais fatores, um aumento do gasto público implica, sim, um câmbio mais apreciado relativamente ao que ocorreria num cenário de gasto mais baixo.
Autoengano à parte, não há contabilidade criativa que resolva este problema.
(Publicado 4/Nov/2010)
Não aprenderam nada mesmo com a Grécia. Será que Mantega e cia. são agentes infiltrados pela Goldman Sachs?
Como não sou economista, até um tempo atrás não entendia o que era superavit primário. Logo, nunca dei bola pro noticiário, independente de se tratar de defcit ou superavit.
Depois de estudar um pouco, passei a entender esses conceitos. Tanto que – mesmo conhecendo quase nada de economia – entendi a natureza da manobra.
A dúvida que me surgiu é: quem eles enganam fazendo isso?
Quem não entende, não vai dar bola. Quem entende, mesmo que superficialmente, vai perceber a manobra ao acompanhar o noticíario.
Me parece estranho isso… Tem que ter alguma outra razão pra todo esse esforço…
Excelente. Gosto muito do Mansueto, mas sua redação é bem mais agradável. Quero escrever bem assim.
Abraços
Daniel
Perfeito. Retrata exatamente os absurdos que o atual governo comete, e que tudo indica continuarão no próximo.
Contabilidade criativa é um belo eufemismo. Além disso, não entrou um R$ na conta do Tesouro.
Alex, se puder me tire uma dúvida. A antecipação de receitas por si só a meu ver não representaria um aumento de dívida, já que você abre mão da receita futura, antecipando benefícios que pertenceriam a uma próxima geração e desconta o fluxo pela taxa de juros do período, mas sem incorrer em aumentos no seu estoque de dívida que gerariam encargos a ser pagos. No caso da antecipação, todo encargo já foi pago no desconto do principal.
Como o governo nunca paga a dívida e apenas rola na duration, gerando um montante de juros em cima de um principal muito superior aquele descontado da receita futura do caso anterior, vc poderia tratar os dois da mesma forma?
Abs
Só faltou dizer que a idéia de vender receitas futuras foi o que levou a Grécia a crise em que se encontra. Em 1999, a Grécia não pode entrar na União Européia por não cumprir a regra de déficit fiscal máximo de 3%. O que os "criativos" gregos fizeram? Eles venderam a arrecadação futura de impostos. O que seria um endividamento virou receita. A mesma coisa que o governo faz agora na Petrobrás. O resultado grego está aí para quem quiser ver.
Alguém teve saco de decompor as contas públicas? Não li se o Raul Veloso o fez. Mas me intriga em ano eleitoral onde está sendo direcionado a "grana". Fico com essa curiosidade pelo seguinte, minha esposa é cordenadora de materiais do Hospital do Câncer de São Paulo, a Fundação AC Camargo e vez ou outra é feita uma doação de algum parlamentar,sabem as tais emendas? Se não me engano a última foi do falecido Tuma. Muito bem, tem que ser destinada à compra de materiais usados pelo hospital, se possível para o atendimento do SUS e tem que bater zero a zero até o último centavo, dá um trabalho infernal e há uma enormidade de papéis a ser preenchida. Então eu pergunto, em que está sendo gasto tanto dinheiro? Huummmmm, como diria o Reinaldo Azevedo, tenho umas idéias mas vou guardá-las para mim.
Para o problema do câmbio periga o Mantega querer imitar os gringos e sair emitindo como um louco, quem sabe uns R$600 quatilhões, lembram-se do Tio Patinhas? No último Batman tem uma cena que o Curinga faz uma puta pilha de dinheiro e toca fogo, aquilo nunca me saiu da cabeça que era uma mensagem subliminar, e à propósito na pilha de US$ queimando tinha um monte de chineses em cima.
Eles fizeram a operação para poder dizer que a capitalização da Petrobras foi a maior operação blá-blá-blá. Não havia demanda por papel da Petrobras, eles a criaram. Para poder fazer pose no debate. Bando de filhos-da-puta.
O que a língua "copomica" fala em bom "copomes" é que: "Vamos ter de fazer um ajuste forte e não podemos falar isso abertamente. Mas que vai doer, isso vai". Enquanto a presidente eleita não estiver empossada e com sua equipe formada, com seus líderes no Parlamento definidos, é provável que nada seja falado em português.
Dawran Numida
os números imaginários do governo são certamente mais interessantes do que aqueles que aprendi na escola. Espero que não paguem meu salário em unidades imaginárias.
"De resto, Dilma sempre foi de esquerda e jamais a renegou, diferentemente de Lula, por sinal." Juca Kfouri
Esse é o mais ilustre jornalista esportivo politizado do Brasil.
Um acéfalo.
Resta saber se se trata de acefalia congênita ou acefalia adquirida, adquirida na vergonhosa fefeléche.
Acho que o povo comprou mesmo a idéia de que a Dilma é desenvolvimentista, inclusive os """""intelectuais""""".
Avança, Brasil!
Pai Alex.
Pois é, Anônimo-4 de novembro de 2010 23:26. Conforme diziam, o demônio é sempre mais bonito do que os caretas dos santos. Tudo ele permite. Já, o santo, proíbe tudo e ainda pede que o crente se penitencie. Quando não, que se persigne. É demais. Um dos problemas dos simples mortais é lograr distingui-los. Daqui cerca de dois meses, talvez.
Dawran Numida
Desculpem se meus comentários não pareciam sérios, mas é que já estou até o tampo com as atitudes desse governo, principalmente no que diz respeito à desconstrução do que foi arrumado, com muito custo pelo Real, custo da sociedade como um todo diga-se. Esse descontrole fiscal nosso juntando-se ao descontrole monetário dos EUA vão produzir um enorme estrago. Eu não posso afirmar com certeza, mas suspeito que as digitais de um certo economista gordinho de pesados óculos estão em muitas das ações atuais. O resultado prático é que nossa cadeia produtiva já foi afetada, a industria não recuperou mais os índices pré-crise, e se olharmos a industria de bens de capital então a coisa fica mais séria.Uma lástima.
"Aliás, não é por outro motivo que cansamos de ouvir no ano passado que o aumento do dispêndio se justificava para evitar que a economia mergulhasse numa recessão. Curiosamente, quem fazia este argumento à época afirma agora que o gasto público não afeta a demanda."
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Matou a pau, Alex!!!
Abraço!
Fabuloso