Somenos de Portugal. Por José Paulo Cavalcanti Filho
SOMENOS DE PORTUGAL
Por José Paulo Cavalcanti Filho
Está na hora de recitar isso também por aqui. Em Brasília, se possível. Só que, caso fôssemos dizer como as coisas são mesmo no Planalto, então seria um foge cão dos demônios…
1. Na terrinha, tudo é diferente. Os 3 Patetas, por lá, são “Os 3 Estarolas”. O Gordo e o Mago, “Bucha e Estica”. Robin Hood, “Robin dos Bosques”. Também a língua é complicada. Nem sempre diz o que pensamos que diz. Como “autoclismo da retrete”, que é nossa descarga de banheiro. E maior palavra não é, como quase todos pensam, “Anticonstitucionalissimamente”. Com só 29 letras. Mas “Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico”, com 46. Uma doença provocada por aspiração de cinzas vulcânicas.
2. Por falar na língua, continuam as reações lusas contra o último acordo ortográfico, celebrado com o Brasil, que eliminou os acentos diferenciais. Isso vem desde 1938, quando foi firmado acordo semelhante. Que não funcionou. O poeta pernambucano Manuel Bandeira saiu furioso de reunião na Academia Brasileira de Letras. Era contra o acordo. E foi voto vencido. Quando os jornalistas perguntaram sua opinião ele, maldoso, respondeu: Por mim, tudo bem. Que, para o poeta, a forma é fôrma. Depois riu e completou: Agora escrevam isso aí sem o acento diferencial.
… O poeta português Ary dos Santos inicia seu poema “O objeto”, dizendo: Há que dizer-se das coisas/ O somenos (de menor importância) que elas são/ Se for um copo é um copo/ Se for um cão é um cão.
3. Fernando Pessoa, que acreditava ser o “Super-Camões”, se rebelou no fim da vida contra o autoritarismo de Salazar. Entre outros poemas de protesto escreveu “Liberdade”. Aquele que começa dizendo Ai que prazer não cumprir um dever. Um verso que todos recitam como brincadeira. Quando é crítica a discurso de Salazar, ordenando que os escritores portugueses deveriam seguir as diretrizes do Estado Novo. Se assim for, então, o prazer será não cumprir um dever. O de ler essas porcarias de Salazar, como que diz. Adiante, Pessoa declara que Jesus Cristo… não sabia nada de finanças. É que Salazar, antes professor de Economia e Finanças, em Coimbra, passou depois (1928) a ser Ministro das Finanças em Portugal. Só que, para Pessoa, um mero Seminarista (assim era conhecido) jamais poderia se comparar ao próprio Cristo. O poema, de 16/3/1935, acabou censurado. Com toda razão. E foi publicado só em 2/9/1937, depois de sua morte. Abaixo do título, há uma indicação entre parênteses: Falta uma citação de Sêneca. Talvez fosse, da Epistola 74, Os verdadeiros bens, sólidos e eternos, são aqueles da razão.
… Cantar a gente surda e endurecida./ O favor com que mais se acende o engenho/ Não no dá a pátria, não, que está metida/ No gosto da cobiça e na rudeza/ Duma austera, apagada e vil tristeza.
(Os Lusíadas, Camões)
4. O poeta português Ary dos Santos inicia seu poema “O objeto”, dizendo: Há que dizer-se das coisas/ O somenos (de menor importância) que elas são/ Se for um copo é um copo/ Se for um cão é um cão. Esses versos passaram a ser mais conhecidos quando, em dezembro 1968, Vinicius de Moraes andou por lá. Perseguido pela ditadura militar. Numa recepção dada pela fadista Amália Rodrigues, foram recitados pelo autor. Parte prato sape gato/ Vai-te vate foge cão. Para encantamento de nosso poeta. Mas essa é outra história. Está na hora de recitar isso também por aqui. Em Brasília, se possível. Só que, caso fôssemos dizer como as coisas são mesmo no Planalto, então seria um foge cão dos demônios.
5. Para terminar, vale a pena lembrar “Os Lusíadas”, do grande Camões. Em versos do Canto décimo, Estrofe 145, que parecem ter sido escritos pensando no Brasil de hoje: Cantar a gente surda e endurecida./ O favor com que mais se acende o engenho/ Não no dá a pátria, não, que está metida/ No gosto da cobiça e na rudeza/ Duma austera, apagada e vil tristeza.
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José Paulo Cavalcanti Filho – É advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.