Câmbio fixo e relógio-cuco

A decisão do Swiss National Bank (SNB) de estabelecer um teto para a moeda (um euro, de acordo com a nova política, não poderá custar menos do que CHF 1,20) é mais um passo do país em sua luta inglória contra a valorização da moeda.
A forte elevação do franco nos últimos meses é resultado da busca por ativos seguros alternativos ao dólar e ao euro (com as taxas de juros, há muito, ao redor de zero, não há como argumentar que demanda por francos decorra do carry-trade), mas o próprio tamanho relativo dos mercados de ativos denominados em francos sugere que não há como absorver este montante de recursos sem uma apreciação considerável da moeda.
Diga-se que o SNB tentou de tudo antes: redução de taxas de juros, aumento da liquidez local, assim como intervenção, seja na forma da compra de moeda estrangeira (venda de francos), seja, mais recentemente, na expressão pública do seu desconforto com a trajetória da taxa de câmbio. A medida adotada esta semana foi mais radical, na prática impondo a fixação de um teto (mas, note-se, não um piso) para a moeda. À luz disso, algumas questões aparecem.
A primeira é se a medida pode funcionar, em particular dado o histórico não muito positivo de tentativas anteriores, ao redor do globo, de fixação de taxas de câmbio. Minha avaliação é que, sim, sujeitas a uma série de considerações que pretendo explorar à frente, são boas as chances da fixação impedir por um bom período de tempo a apreciação (nominal) da moeda.
A verdade é que, quando as autoridades querem impedir a apreciação da moeda, suas chances de sucesso tendem a ser maiores do que no caso oposto. A fixação do teto implica um compromisso de comprar toda moeda estrangeira ingressante (ou, de forma equivalente, de vender a moeda nacional). Como o SNB tem o poder de criar francos, ele pode, a princípio, vender uma quantidade ilimitada destes. Isto contrasta com as dificuldades que podem surgir da necessidade de defender um piso para a moeda (impedindo sua depreciação) por meio da venda de moeda estrangeira, por definição um recurso limitado, já que o SNB, por mais reservas que detenha, não pode criar dólares (ou euros) para venda.
Isto dito, é importante qualificar que a possibilidade de venda, a princípio ilimitada, de moeda nacional. Em tese, o SNB pode criar quantos francos quiser; na prática, em algum momento ele terá que se preocupar com as conseqüências desta ação, qual seja, eventuais pressões inflacionárias (e/ou bolhas de ativos) que esta política poderá causar.
Concretamente, na ausência de controles sobre o ingresso de capitais, o SNB tem que trazer suas taxas de juros para patamares próximos daqueles relativos à moeda contra a qual resolveu fixar a sua (no caso suíço, o euro, contra o qual o franco foi fixado). Assim, ao invés de fixar a taxa de juros de acordo com sua meta de inflação (menos do que 2% ao ano), o SNB terá que ajustá-la para (tentar) garantir esta paridade, o que, em geral, não é consistente com a busca de uma meta para a inflação.
Entretanto, as condições iniciais sugerem que tais limites não serão relevantes por algum tempo. A inflação suíça nos últimos 12 meses (até julho) se encontra um pouco abaixo de 0,5% e não ameaçou ultrapassar a meta em nenhum momento dos últimos 3 anos. Assim, muito embora haja, como norma, uma inconsistência entre o controle simultâneo de preços e câmbio, ela não deve se manifestar imediatamente. Pelo contrário, sob certas condições (ver modelo abaixo), a fixação da taxa de câmbio num patamar mais desvalorizado pode ser precisamente o requerido para trazer a inflação de volta à meta.
A segunda questão são as conseqüências de tal política sobre os mercados mundiais. Com um porto seguro a menos, acredito, a tendência é aumento da pressão sobre os demais. Por exemplo, parece provável alguma queda adicional dos rendimentos dos Bunds, assim como outros títulos do norte europeu, ouro e, em alguma medida, moedas de produtores de commodities (Austrália, Canadá) com possíveis, embora modestas, repercussões sobre o real.
A propósito, se o SNB se dispõe a comprar moeda estrangeira, terá que aplicá-la em ativos: títulos em euro e, segundo matéria do FT, provavelmente diversificando na direção das moedas acima mencionadas (não o real, é claro). Isto apenas reforça o ponto levantado no parágrafo anterior.
A terceira questão é a relevância deste experimento para o Brasil. Alguns deve estar se perguntando “se a Suíça fez, o que impede o Brasil de fazê-lo?”. A rigor, o BC sempre terá a opção de fixar a taxa de câmbio, se assim o desejar. Basta anunciar, a exemplo do SNB, a disposição de comprar moeda estrangeira numa dada taxa (imagino que a decisão em si caiba ao CMN, mas isto não é relevante para a discussão).
O problema, óbvio, é que o BC não enfrenta – como é o caso do SNB – inflação abaixo da meta; muito pelo contrário. Caso fixasse o câmbio (no caso contra o dólar) teria que reduzir significativamente a Selic para fazer com que, ajustada a risco, a taxa se alinhasse à taxa em dólares.
Alternativamente, teria que impor controles mais estritos à entrada de capital, mas isto, por sua vez, requereria uma redução do déficit em conta corrente, cuja contrapartida deveria ser a redução da absorção interna relativamente ao PIB. Isto poderia ocorrer como resultado de política monetária (nada provável, dadas as decisões recentes), ou política fiscal (mas quem acredita nisso?), ou, em última análise, por conta da inflação mais alta erodindo o salário real. Fico imaginando qual alternativa seria adotada…
* * *
Um modelo simples
Vamos descrever o lado da oferta por uma curva de Phillips, adicionando um termo à inflação passada [p(t-1)] e hiato [y(t)]: o desvio da taxa de câmbio [e(t)] relativamente a seu valor “justo” (normalizado para zero – estamos trabalhando com logs). O modelo não é estocástico.
p(t) = p(t-1) – ay(t) + ke(t)
O hiato depende do desvio da taxa real de juros (a taxa nominal, i(t), deduzida a inflação, p(t)) com relação à taxa “neutra”, r, (não é bem a taxa neutra, mas a que seria neutra numa economia fechada, ou com a taxa de câmbio no seu valor “justo”)  e do desvio do câmbio com relação ao “justo”:
y(t) = -b[i(t) – p(t) – r] + ge(t)
O desvio do câmbio depende do diferencial de taxa de juros (mas o juro externo é suposto zero para economizar notação):
e(t) = -fi(t)
Supomos, por fim, que a função perda do BC o faça igualar a inflação à meta em cada período:
p(t) = p
e definimos a taxa nominal neutra como i* = r + p.
Resolvendo o modelo para i(t) achamos a função de reação do BC.
i(t) = {[p(t-1) – p] + abi*}/[a(b+gf) +kf]
Note-se que para atingirmos i(t) = 0, seria necessário que:
p(t-1) = p + abi*
Normalmente, portanto, não esperaríamos que isso ocorresse, a menos que a taxa “neutra” real se tornasse suficientemente negativa para fazer com que a inflação caísse abaixo da meta (já que não há choques imprevisíveis), isto é:
p(t-1) = p + abi  < p
ou seja:
r <- p
Nesse caso (esquisito) a taxa nominal “neutra” teria que ser negativa, mas isto é uma impossibilidade, e a inflação ficaria persistentemente abaixo da meta. Sob tais circunstâncias, a depreciação da moeda, via fixação do câmbio, poderia ser uma resposta adequada.
O modelo é simples demais e usei mais atalhos do que seria recomendável, mas acho que o ponto central permanece: esta estratégia só faz sentido face a um desvio persistente para baixo da inflação com relação à meta.
Comentários são bem-vindos, como sempre.

20 thoughts on “Câmbio fixo e relógio-cuco

  1. Alex,

    Outro dia li que Bernanke entrou no Fed com seu livro Inflation Targeting debaixo do braço, mas acabou tirando da estante outro livro: Essays on the Great Depression.

    Nele o autor explora os desequilíbrios internacionais entre as reservas de ouro e as políticas monetárias durante a década de 1920, sob o padrão ouro. Conclui que países que abandonaram o padrão ouro apresentaram recuperação econômica mais cedo e robusta que os que permaneceram, pelo menos até 1936.

    Já em 2004 (se não me falha a memória) o próprio Bernanke falava da hipótese de "global saving 'glut'" por parte de países asiáticos e exportadores de petróleo que ao formarem reservas de dólares reaplicavam-nos em títulos americanos que reduziram as taxas de longo prazo da economia americana e criou uma elevada liquidez.

    Talvez uma coordenação internacional seja mais importante que atitudes isoladas. Mesmo sabendo que coordenação nem sempre sempre é bem sucedida.

  2. "Faltou considerar a taxa de câmbio real na análise."

    Bom ponto, mas acho que está implícito (explícito?) no modelo. Ao longo da função de reação a inflação é constante. Logo, se a taxa nominal se desvaloriza, a taxa real também o faz.

    Abs

  3. Alex,

    A ameaça do do Banco Central suíço é crível, eles podem comprar quanta moeda estrangeira eles quiserem. É a foolproof do Svensson.

    Aliás, banqueiros centrais da época do padrão-ouro iam rolar de rir ao saber que o Fed está com problemas com a baixa inflação. Nunca um banco central em em regime de moeda fiduciária quis criar inflação e não conseguiu.

    O fundos hedge estão armando a mãe dos ataques especulativos ao SNB. O desenrolar dessa história vai ser no mínimo uma boa aula.

    Abs

  4. "Japao nos anos 90?"

    Tiro na água O.

    O BOJ claramente reverteu a política monetária expansionista quando a inflação começou a subir.

    Nem um caso.

  5. O ponto quanto à taxa de câmbio real é o seguinte. A Suíça pode estabelecer um teto para a taxa de câmbio nominal porque tem inflação baixa e sob controle. No caso brasileiro, na falta de um ajuste fiscal para valer, o que nos resta é observar a continuidade da valorização do câmbio real.

  6. Não é tanto ter a inflação baixa; é ter a inflação significativamente abaixo da meta, com a taxa de juros próxima a zero, sugerindo a possibilidade de uma taxa real neutra bem negativa.

    Isto dito, a relação entre política fiscal e câmbio no Brasil é exatamente a que apontou.

  7. "Isto dito, a relação entre política fiscal e câmbio no Brasil é exatamente a que apontou."
    Sei não hein…vem por aí uma dissertação bombástica sobre isso! hahaha

  8. Supondo que o SNB vendesse moeda nacional em quantidade suficiente para criação de bolha em ativos no seu próprio país, pergunto como leigo:
    Qual a forma de diminuir a quantidade de moeda vendida em circulação, dentro de uma normalidade econômica interna e externa?

  9. Tava dando uma olhada no SAMBA. A resposta do modelo ao impulso no consumo do governo sobre a taxa real de câmbio é positiva, ou seja, aumento do gasto deprecia o câmbio (temporariamente, claro). Figura 7 do trabalho.

  10. Legal o post, Alex. Consegui acompanhar seu raciocínio. A coisa complicou quando você apresentou “Um modelo simples”. Mas isso era o esperado.

    Aliás, sou grato a você e ao "O" por contribuírem para o decréscimo da minha ignorância nos assuntos da economia.

    Do "O", o post que até hoje achei mais interessante [é o que me veio de imediato à lembrança] foi o que tratou da Teoria Quantitativa da Moeda nestes termos: “tem poder explicativo zero para a determinação da taxa de inflação no curto e no longo prazo nas últimas três décadas nos EUA (vide Sargent e Surico, AER 2011).”

    Aprendi bastante com a provocação do “O” e com os comentários a favor e contra.

  11. O erro que citei anteriormente é revertido por outro erro cometido na resolução para i(t) de forma que a conclusão não se altera.

    Bom post.

  12. Ângelo disse…
    Supondo que o SNB vendesse moeda nacional em quantidade suficiente para criação de bolha em ativos no seu próprio país, pergunto como leigo:
    Qual a forma de diminuir a quantidade de moeda vendida em circulação, dentro de uma normalidade econômica interna e externa?

    9 de setembro de 2011 21:51

    Alguém consegue me explicar o acima?
    Depois da expansão monetária e a conseqüente impressão de mais papel-moeda, como diminuir a quantidade de moeda em circulação?
    1 – mediante compulsório nos bancos; espera-se a economia real alcançar a expansão monetária para, posteriormente, diminuir/extingüir o compulsório?
    2 – aguarda-se as notas ficarem rotas e não as substituem mais? rs, rs, rs

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