Vale a pena salvar o euro?

A pergunta é retórica. Não há a menor dúvida que as autoridades europeias estejam firmemente convencidas acerca da necessidade de manutenção da moeda única e dispostas a fazer o possível neste sentido. Vejo, aliás, nisto a mesma motivação política que esteve por trás da criação do euro; por outro lado, acredito que os países da Zona do Euro (ZE) continuam não prestando atenção à falha essencial no desenho da moeda e, portanto, que seu esforço para mantê-la não será garantia de estabilidade. 
Digo isso porque a crise ainda é percebida como um fenômeno fiscal e apresentada como fábula moral: as cigarras periféricas que cantaram durante o verão agora sofrem os rigores do inverno financeiro, enquanto as frugais formigas centrais, que pouparam arduamente, conseguem passar pelas provações, mas não querem sustentar seus colegas pródigos. A saída seria, portanto, o ajuste fiscal hoje e, mais à frente, a harmonização das políticas de gastos, sujeitas a uma autoridade central. No entanto, da forma como entendo a gênese da crise, creio que isto não seria suficiente para que a região se tornasse imune a turbulências como a atual.
Não me compreendam mal. Estou convencido que alguma harmonização fiscal é necessária, em particular como contrapartida à existência de um fundo de resgate, já que não queremos que a perspectiva de salvamento funcione como incentivo para comportamentos irresponsáveis.
O problema, porém, com esta solução é que ela atribui a crise ao mau desempenho fiscal de alguns países, visão que se choca com a evidência. Se é fato que a Grécia abusou da disponibilidade de recursos baratos para permitir um aumento persistente de seu déficit fiscal, um breve olhar sobre os demais países hoje em dificuldade sugere que o comportamento fiscal antes da crise não foi um arauto dos problemas recentes.
Espanha, Irlanda e, em menor grau, Portugal apresentavam, por exemplo, endividamento mais baixo que Alemanha e França, assim como (Portugal à parte) déficits fiscais substancialmente inferiores aos observados nos países-formigas. Já a Itália, em que pese a dívida elevada, apresenta números fiscais que, embora nada brilhantes, têm sido dos melhores na região. A verdade é que, Grécia excluída, é difícil encaixar a fábula nos dados. Isto não quer dizer que os países acima não enfrentem hoje problemas de ordem fiscal, mas tal desenvolvimento é mais conseqüência do que causa da crise.
A rigor, se alguém busca um conjunto de dados que, ao menos em retrospecto, pareça ser um oráculo mais preciso dos países que entrariam em dificuldades, a diferença da inflação com respeito à Alemanha é o melhor candidato. As economias hoje no epicentro da crise financeira registraram inflação consideravelmente superior à alemã entre 2000 e 2007 e em todas elas os custos unitários do trabalho (que mede a evolução dos salários relativamente à produtividade) subiram entre 30% e 40% no período, enquanto os alemães ficaram praticamente estáveis.
Resta saber o porquê. Afinal de contas, há um Banco Central Europeu cujo desempenho no quesito inflacionário foi, nas palavras algo irritadas de seu ex-presidente, “impecable, impecable”. No entanto, se isto foi verdade para o conjunto da área do euro, não necessariamente valeu para cada um de seus elementos.
Parece estranho para brasileiros. Afinal de contas, se os salários sobem em um estado relativamente aos demais, é de se esperar que a migração corrija o problema, não imediatamente, é claro, mas num horizonte razoável, impedindo a criação de disparidades como as observadas na ZE. A diferença, no caso, é a existência de um mercado de trabalho integrado no Brasil, em contraste com um mercado europeu fragmentado por diferenças lingüísticas e culturais.
Na prática o aumento do custo unitário representou uma forte apreciação da taxa real de câmbio nos países periféricos, cuja contrapartida foi a acumulação de elevados déficits em conta corrente. Quando a crise financeira eclodiu, estes países foram forçados a reduzir seus déficits externos, sem acesso, contudo, à desvalorização cambial. Na ausência desta, a única saída é a “desvalorização interna”, isto é, a redução de seus preços e salários em relação à Alemanha.
Fossem preços e salário flexíveis, esta correção ocorreria (numa primeira aproximação) sem grandes efeitos sobre atividade e emprego; dada, porém, a rigidez de ambos, seu ajuste passa pelo aumento do desemprego, não por acaso particularmente elevado nos países em crise. Isto se reflete na piora do desempenho fiscal, em larga medida pela queda abrupta da arrecadação.

Se, porém, esta interpretação for correta, o resgate do euro, mesmo a criação de instituições que harmonizem a política fiscal, não impedirá a eclosão de problemas similares a menos que a integração do mercado de trabalho seja muito aprofundada, desenvolvimento que, sinceramente, não sei ser possível. Isto foi ignorado no passado e continua a sê-lo; não impediu a criação do euro e provavelmente não impedirá que seja salvo, mas permanecerá como uma incômoda lembrança de uma falha que nos custa muito hoje e poderá nos custar ainda mais no futuro.

Vale ou não vale?

(Publicado 3/Nov/2011)

19 thoughts on “Vale a pena salvar o euro?

  1. Pelo que eu entendi, de uma forma metafórica, podemos dizer que o euro tem um problema no seu DNA, e estará fadado a ter problemas crônicos ou até perecer.

  2. Mais uma vez, muito bom.
    Para alguém com pouco tempo, na sua opinião, qual a melhor referência para estudar área monetária ótima?
    Daniel

  3. Sem dúvida que apontar o dedo para o lado fiscal seria um equívoco. Tam como exposto em seu texto os deficits fiscais surgiram em função de problemas com custos de mão de obra, taxa de câmbio real, e por aí vai…Acho que o que falta é uma harmonização nas condições estruturais dentro da zona do euro, com reformas que aumentem a produtividade dos trabalhadores, reduza os custos dos que empregam e eventualmente demitem, o que em alguns países da Europa é quase proibido. Caso contrário o euro continuará sendo uma moeda única que circula entre países totalmente diferentes.
    Abraços.
    M.

  4. ALEX

    Eu entendo o seu ponto de vista, mas eu vejo a raiz do problema como moral hazard. Os bancos emprestaram para os PIGS a um spread infimo – em relacao 'a Alemanha – por considerarem que caso a coisa sujasse a ZE como um todo iria pegar a alca do caixao. A concepcao da uniao monetaria considerava que o spread daria conta da falta de uniao fiscal. Era um ponto de vista teoricamente correto, mas que na pratica foi detonado pela acao irresponsavel dos credores. Este moral hazard continua a ser sustentado pelas intervencoes do BCE no mercado secundario.

    Ha' um problema mais grave do que o descompasso de custos de producao entre os "perifericos" e os "centrais". E' o problema de infraestrutura produtiva. Portugal e Grecia NAO competem com a Alemanha e Austria, mas com a China. A estrutura industrial daqueles paises fabrica – ou fabricava – bagulhinhos, e nao BMWs ou produtos industriais de alta tecnologia. Desta forma uma desvalorizacao interna do tamanho da sobrevalorizacao salarial em relacao aos "centrais" nao adianta muito, uma vez que compram os bagulhoes alamaes, mas a Alemanha compra os bagulhinhos chineses. Entao e' necessario uma desvalorizacao muito mais cavalar, que simplesmente nao e' possivel de se obter dentro do sistema de moeda unica.

    Um grande abraco

    Kleber S.

  5. Muito bom artigo. Essa crise é bem parecida com as crises de BP pelos quais os emergentes já passaram muitas vezes, só que com o câmbio fixo (e a manutenção desse regime após a crise).
    Mas será que uma união fiscal não poderia corrigir (ou pelo menos diminuir) estes problemas no futuro? Pois os sintomas que vc descreveu indicam que houve um grande uso de poupança externa no período. A política fiscal não poderia ter sido apertada para elevar a poupança doméstica e diminuir a inflação e dependencia de poupança externa (e diminuir os desequilibrios)?

    Abs

    T.

  6. Antes da crise o operário grego ganhava mais que o alemão. Houve algum fluxo de alemães para trabalhar na Grécia?
    Pelo pouco que se discute a respeito não parece ter sido e não é considerado importante. O ponto colocado pelo blogueiro é inovador dentre muitos que comentam a crise. Essa imobilidade da mão de obra por motivos da natureza da estrutura da economia de cada país, por motivos culturais, lingüísticos, vai ao cerne da questão do Euro no longo prazo.

  7. "Como é possivel estimar a taxa real de cambio entre paises com mesma moeda?"

    Por exemplo, através da relação dos IPCs. Se o IPC da Espanha sobe com relação ao da Alemanha, a taxa de câmbio real Espanha-Alemanha está se apreciando.

    Alternativamente podemos olhar os preços de não-comercializáveis (os IPCs, por terem um peso maior de não-comercializáveis, já capturam a medida), como aluguéis, escolas, etc.

    Abs

  8. Bem off topic, mas é muito interessante notar como as vozes que no passado defendiam tão arduamente as políticas econômicas argentinas estão silenciosas ultimamente…

  9. Pedro, não sou o mesmo anônimo que disse que vc não deve "fazer isso com sua vida acadêmica", mas sou estudante de graduação da FACE/UFMG, e basicamente todos os professores da graduação dão aula na pós, e posso te dizer que lá a turma é predominantemente heterodoxa, entretanto há alguns ortodoxos que tabmém lecionam na pós. A pós é mais focada em economia regional, aqui tem um link com as matérias que foram ofertadas esse semestre, vê se lhe serve:
    http://www.cedeplar.ufmg.br/avisos/downloads/matricula/Regulares.pdf

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