Entrevista para a geladeira. Por Marli Gonçalves
ENTREVISTA PARA A GELADEIRA
MARLI GONÇALVES
Abriu a porta da geladeira, viu a luzinha acesa e logo saiu a dar entrevistas, falando pelos cotovelos aos rabanetes, cenouras, potes de manteiga, compotas e sobras de comida. Anunciou que faria coisas sobre as quais não tinha exatamente a ideia ou informação organizada. Muito menos explicações razoáveis, ou um discurso com cabeça, corpo e membros…
Foi atropelado pelas batatas e quanto mais tentava se explicar mais muitos nós deu no pulôver do pescoço e se enrolou inteiro. As palavras pobre, ração, lixo, pó, alimento vencido, o pote com a imagem de Nossa Senhora Aparecida (deixem-na em paz, fora da política!) se misturaram e tornaram o assunto bem pouco palatável. Aliás, ficou até bastante indigesto, inclusive por misturar alho e bugalhos em biscoitinhos e com a Igreja. Se a ideia era boa, ninguém soube, ninguém viu.
O governo anda assim. O governo, não. Os governos. Todos os níveis. Calados seriam poetas. Perdem as batalhas da comunicação e isso cada vez mais impressiona. Meu bom coraçãozinho não quer pensar que é de propósito, não posso acreditar que lançam esses torpedos polêmicos e mal ajambrados quando precisam mudar o foco de alguma coisa, nos distrair. Impressionante: da boca deles brotam, jorram, incongruências.
Ah, seria bom se a comunicação fosse mais respeitada, e que a profissão de jornalista, particularmente falando por mim que trabalho nessa área, assessoria, crises, fosse mais honrada e responsável, que as coisas não fossem assim jogadas ao vento para ver até onde ele leva, porque já estamos bem dentro de um furacão. Não estamos querendo vulcões em erupção.
Os dias têm sido bastante pródigos em outros bons exemplos. Vamos lá, na linha manchetes que eles próprios nos deram e depois precisaram sair correndo para remendar, em geral chegando atrasados e metendo ainda mais os pés pelas mãos. “Governo libera mineração em área de preservação ambiental na Amazônia”. “Fiscalização do trabalho escravo vai acabar”. “Merenda escolar será de ração feita de alimentos que iam para o lixo”.
Seguido pelo festival de “não era bem assim”, “vocês não entenderam”, “tirem o viés ideológico”, “é golpe, é golpe”, “não querem que eu concorra”.
Mas o problema é que pode ser ideia boa e que pode acabar sendo desperdiçada, o que não é o caso, claro, nem da Amazônia nem do trabalho escravo. Mas da tal farinata, se tivesse sido apresentada direito. Um suplemento alimentar, nutritivo, produzido com bons e selecionados alimentos que são desidratados e podem integrar vários pratos em várias formas. Ideia antiga, inclusive, e que se bem desenvolvida já teria melhorado a miséria e a fome. Todo mundo come um monte de coisas que a gente não tem a menor ideia e vêm nos produtos.
Lidar com a imprensa não é simples, não é igual fazer selfie pelo celular, snap que se apaga. Outro dia, em um desagravo a um grande advogado, este fez em discurso uma ótima comparação, que aponta a dimensão do perigo, e a diferença – e até rixa – de tratamento entre as profissões, ambas com direito indiscutível a sigilo profissional. “Nunca vi no noticiário mostrarem gravação entre um repórter e a fonte, mesmo com acusação. Mas já vi várias gravações de advogados com seus clientes”.
Por outro lado, já há alguns anos os advogados têm assumido o papel de porta-vozes. Daí, tantas laudatórias e assinadas notas com palavras incompreensíveis e jurídicas ao grande público.
Enfim, considerem “Em boca fechada não entra mosquito”, uma das expressões mais objetivas e fundamentais para lembrar agora.
Tem outra boa: o peixe morre pela boca; essa lembra o anzol que o peixe corre a abocanhar a isca. Nós, jornalistas, dispomos sempre de várias minhoquinhas para jogar ao mar. Junto com as pretensões de muitos políticos por aí.
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Marli Gonçalves, jornalista – #prontofalei
São Paulo, gestão congestionada, 2017
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