Ricardo Setti envia toques importantes para entender o que se passa na Espanha. Cacalo se rende
A propósito do que escrevi sobre o busílis Espanha/Catalunha – Está difícil apoiar Madri em relação à Catalunha, os contra de lá são saudosos do franquismo – recebi um “pito”, no meu e-mail pessoal, do meu querido amigo e grande jornalista Ricardo Setti, que aceito de bom grado, feliz da vida, por saber que é meu leitor – Temer, provavelmente, escreveria sabê-lo meu leitor, pero es my feo. Não bastasse seu currículo capacitador para contestar quase todos sobre quase tudo, atualmente mora na Espanha, em Barcelona, vive in loco o problema. Reproduzirei ipsis litteris o que me mandou:
“Não são saudosistas do franquismo que estão trombando com o governo golpista da Catalunha, meu irmão. Você ficou sabendo de um manifesto assinado por nada menos do que 2.500 personalidades de esquerda classificando a “independência unilateral” da Catalunha como “uma fraude democrática”? Seriam saudosistas do franquismo o mais que centenário Partido Socialista Obrero Español, que está apoiando as medidas do governo central, ao qual se opõe ferozmente em praticamente tudo o mais? Seria saudosista do franquismo o José Luis Rodríguez Zapatero? Ou Felipe González, que venceu quatro eleições consecutivas, governou a Espanha por 14 anos e transformou extraordinariamente? (Eu o considero o único político — no caso ex-político — ainda vivo com porte de estadista de verdade na Europa).
A Catalunha é governada por fanáticos irresponsáveis, que constituíram a mais estapafúrdia aliança que se possa imaginar. Veja só: esse “president” Puidgemont pertence a um partido que teve que mudar de nome de tantos escândalos e roubalheiras que protagonizou. De Convergencia i Unió (CiU) para Partido Democrata de Catalunya (PDeCat). Esse partido, meu irmão Cacalo, sempre foi de direita no espectro político espanhol e catalão, sempre foi o partido da burguesia e da alta burguesia catalã — a qual, por sinal, apoiou entusiasticamente o franquismo e, em troca, foi grandemente beneficiada pela ditadura. A CiU sempre foi “catalanista”, ou seja, defendia manter e reforçar os traços característicos da cultura catalã, a começar pelo idioma.
Nada de separação da Espanha, tanto que apoiou no Congresso um dos governos de Felipe González que não tinha maioria absoluta e, durante oito anos, o ferrabraz José María Aznar, do PP. Para a aventura independentista, a CiU se aliou numa coligação chamada “Junts per Sí” com um inimigo histórico — a Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), partido tradicional de esquerda, que defendeu a República durante a Guerra Civil e teve o presidente catalão Lluis Companys fuzilado pelo franquismo. A ERC sempre, invariavelmente, se opôs ao CiU, que governava aliado ao PP reacionário. Topou aliar-se à CiU quando um burguesão que presidia a Catalunha, Artur Mas, de família rica e fidalga, percebeu que o “soberanismo”, como se diz aqui, poderia mudar-lhe a imagem e dar-lhe votos. Ele virou independentista depois de velho, numa manobra calculada (e não menos cínica).
Pois bem, essa aliança CiU com a ERC, ou o “Junts per Sí”, perdeu a maioria de votos para os partidos não independentistas na eleição de 2015. Teve 39,5% dos votos e elegeu 62 deputados — quando a maioria em 135 seriam 68. Para obter maioria, precisou ajoelhar-se ante um partido muito pior do que seria, no Brasil, um PSTU da vida, chamado CUP, composto por “antissistemas” que se dizem leninistas, defendem o fim da propriedade privada (não dos meios de produção, da propriedade privada assim dita), são contra o euro, querem sair da União Europeia e por aí vai.
Esses caras conseguiram, pela primeira vez na vida, eleger nada menos do que 10 deputados — os quais frequentam o Parlamento, de propósito, mal vestidos, sujos, às vezes maltrapilhos, com calças rasgadas e tênis caindo aos pedaços, de camisetas esfiapadas, com mochilas velhas dependuradas no ombro. Como são “de esquerda”, nem pensar em terno e gravata. Zombam o tempo todo das regras e ritos parlamentares. Pois essa corja, que no Brasil estaria à esquerda do MST, acabou topando unir-se com o Junts per Sí para que se chegasse à independência “na marra”. Para isso, e para humilhação da velha CiU, exigiram a saída de Artur Mas do governo, porque ele havia feito ajustes e cortes orçamentários como forma de enfrentar a crise econômica. Artur Mas, o idealizador da aliança com a ERC e o líder da virada independentista da velha CiU de direita, teve que sair com o rabo entre as pernas para que os antissistemas se juntassem à aliança Junts Per Sí.
O maluco da história é que, mesmo com os votos da tal CUP, os independentistas não obtiveram a maioria de votos — chegaram a 47%, contra 53% dos não independentistas. Por caprichos da legislação eleitoral, porém, acabaram chegando a 72 cadeiras de deputado com o apoio dos antissistemas. A oposição, que ganhou a eleição, não passou de 63. A convocação do que os independentistas chamaram de referendo — e que, burramente, o governo de Rajoy tentou impedir inclusive na porrada, coberto por ordens judiciais — viola a Constituição da Espanha, que diz que a soberania do país reside “no povo espanhol”. Plebiscitos são admitidos, até separatistas, mas o país inteiro precisa votar. Além disso, a convocação atropelou todas as normas do próprio Parlamento.
Tal como ocorreria no Brasil, foi um casuísmo em cima do outro: mudaram o regimento interno em cima da hora, alteraram o quórum para decisões transcendentais, só deram duas horas para a oposição examinar o teor de duas leis complexas (a da convocação do referendo e outra destinada a dotar a Catalunha de uma legislação transitória depois do “sim”, que já tinham como certo), impediram a oposição de propor emendas — sim, numa democracia europeia! — e tocaram o barco. O governo, via procurador-geral, entrou com recursos no Tribunal Constitucional, que declarou inconstitucional as duas leis e (como aqui tem poderes pra isso) proibiu, sob diversas penas, que elas fossem executadas. Vários atos ligados ao referendo foram também suspensos e proibidos pelo próprio Tribunal Superior de Justiça da Catalunha. Então, tecnicamente, o governo e o Parlamento da Catalunha, dominados por independentistas, estão fora da Constituição e em desobediência a decisões judiciais. Daí ter o governo, tecnicamente em cumprimento a decisões judiciais, ter acionado um artigo da Constituição, o 155, que permite intervenção em graus variados em comunidades autônomas (nome dos Estados aqui, com mais autonomia do que no Brasil).
Começou por perguntar ao Puidgemont se ele declarou ou não a independência, tal foi a confusão que o “president” aprontou no dia em que deveria fazer exatamente isto. Ele disse que o referendo significava que a Catalunha é uma república independente, mas imediatamente pediu que o Parlamento suspendesse a independência. A independência foi suspensa, embora — acredite! — não tenha votado nada a respeito. Ficou suspensa, e pronto.
Milhares de pessoas que esperavam fora do edifício do Parlamento só puderam comemorar a declaração por exatos oito segundos, como você já deve estar cansado de saber. Ao mesmo tempo, em manobra digna dos piores políticos de Brasília, o president e seus aliados foram para uma sala FORA DO PLENÁRIO do Parlamento e assinaram, todos, um documento duríssimo, que declarava a independência. Mas que não tem valor jurídico algum, nem na “legalidade” inventada pelos independentistas, uma vez que não tramitou no Parlamento.
O governo, apoiado pelo PSOE e por um partido novo, de centro, chamado Ciudadanos, além de partidinhos regionais, encaminhou um ofício ao Puidgemont que esclareça, até segunda-feira, se ele declarou ou não a independência. Da resposta depende a aplicação do artigo 155 em maior ou menor grau, ou sua não aplicação. A aplicação pode implicar em que o governo central assuma a gestão da Catalunha por algum tempo e, necessariamente, convoque eleições. Se vc soubesse o que faz o governo com os meios de comunicação daqui — “vivemos sob uma ditadura”, me disse ontem o catalão Marcel, dono da lavanderia que utilizamos –, teria vontade de vomitar.
A TV pública daqui, TV3, tem cinco canais e faz propaganda descarada do independentismo e da hostilidade à Espanha em tudo — do noticiário às mesas redondas. É uma coisa vergonhosa a permanente omissão ou distorção de fatos — até as imagens são escolhidas a dedo para sustentar sua ideologia. Os dois grandes jornais daqui, La Vanguardia (que foi franquista, chamava-se La Vanguardia de España e cujo dono é um conde) e El Periódico, por temor da patrulha permanente dos independentistas, ficam em cima do muro nos editoriais, mas são recheados de colunistas de pensamento único. Os dois principais jornais em catalão, ARA e El PuntAvui, são escandalosamente subsidiados pelo governo, uma vez que não têm anúncios. O ARA é em papel branco, de alta qualidade, e em nenhum exemplar que comprei até hoje vi um só anúncio! As “organizações sociais” que promovem o independentismo estão dependuradas no governo. Chamam-se Omnium Cultural (que de cultural não tem absolutamente nada) e “Assembleia Nacional Catalã”, embora ninguém ali tenha sido eleito para nada.
Recentemente, a imprensa online aqui, altamente investigativa em vários casos, mostrou que a tal Omniu recebeu 20 MILHÕES DE EUROS do governo nos últimos 4 anos. Por sua vez, os quase 40 anos de governos nacionalistas fizeram a cabeça de duas gerações de jovens catalães via escolas. Eles se sentem desconectados da Espanha e hostis em relação a um país de que não sabem praticamente nada, aprendem uma história falseada — dizem três livros de historiadores catalães –, recebem todas as disciplinas apenas em catalão e, só a partir dos 7 anos de idade, têm duas horas POR SEMANA de espanhol.
Quem gosta da Espanha ou se sente espanhol é apontado por vizinhos ou boicotado por fregueses. Jordi, um amigo meu dono de uma frutaria, disse que só excepcionalmente fala espanhol com clientes, por temor de boicote. Eu ouço isso todo santo dia. Bem, paro por aqui, porque é assunto que não acaba mais. O tema é muito complexo, tem raízes históricas — embora só 30% da população da Catalunha de hoje seja de origem catalã propriamente dito, o restante veio ou descende de gente de todas as partes da Espanha e de imigrantes estrangeiros — e, evidentemente, inclui gente muito séria e decente que se situa no campo do independentismo e igualmente canalhas e oportunistas do outro lado.
Obs.: – O que tenho a dizer é, humildemente, plim plim, desculpem a minha grotesca falha.
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Acompanhei boa parte da sessão do STF que decidiu que o Congresso tem de avalizar afastamento de parlamentares. O que não faço pelos meus raros e pacientes leitores… Um ministro fala, concordo com ele; vem outro e fala o oposto e penso “não é que ele também tem razão?” E assim foi até o quase até o fim. Empate 5 a 5. Então, chegou a vez da presidente da Corte, Cármen Lúcia, voto de Minerva, que mais me pareceu de “me enerva”, embaralhou tudo, concordou discordando ou discordou concordando, não entendi mais nada.
A questão a se considerar é a seguinte: as leis são tão mal redigidas que nem os que deveriam entendê-las chegam a um acordo. As normas parecem ter sido escritas por jornalistas escolhidos entre aqueles que maltratam o vernáculo diariamente nos jornais. Se assim não “sesse”, não existiria o Mirando.
A tucanagem atingiu em cheio a linguagem, as gordas, agora, são chamadas de plus size, as exageradamente magras, de anoréxicas. Ainda bem que as lindas continuam sendo lindas. Viva Vinicius de Moraes!
(CACALO KFOURI)
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