Torcida ou mistificação

Já devia estar acostumado, mas ainda me espanto com
as tentativas de “tropicalizar” o debate econômico no Brasil. A motivação quase
sempre tem caráter geográfico: ou a teoria econômica vira de ponta-cabeça
quando cruza a linha do Equador, ou deixa de funcionar dentro das fronteiras brasileiras,
talvez por conta da malemolência nacional, mas mais provavelmente porque aqui frequentemente
se inventa de justificar o injustificável.
Na semana passada, por exemplo, quem se deu ao
trabalho de ler a entrevista do secretário executivo do Ministério da Fazenda
há de se ter deparado com sua afirmação que a aceleração do
crescimento contribuiria para a redução da inflação, pois a produtividade seria
“pró-cíclica”, isto é, aumentaria quando a economia cresce e cairia nos
períodos de menor expansão.
Tal afirmação é curiosa, porque, se verdadeira,
significaria que a política monetária adotada por bancos centrais do mundo todo
(inclusive o brasileiro, quando ainda se importava em atingir a meta para a
inflação) teria sido contraproducente. E mais intrigante ainda, porque, mesmo
seguindo uma suposta política contraproducente, tais BCs ainda teriam
conseguido a proeza de estabilizar a inflação!
De fato, se alguém tivesse que resumir como os BCs
que tiveram sucesso ao lidar com o problema inflacionário se comportam, a regra
seria simples: eleve a taxa de juros quando a inflação ameaça subir além da
meta (um tanto a mais do que o aumento da inflação esperada) e faça o contrário
quando a inflação cair abaixo da meta. Em outras palavras, pise no freio quando
a inflação sobe e no acelerador quando cai.
O motivo por trás deste comportamento é
cristalino: há evidências fortes que, à medida que o produto (e o emprego)
ultrapassam determinados patamares o crescimento do salário tende a ser maior
que o crescimento da produtividade, pressionando os preços. Em números, se cada
trabalhador produz 5% a mais, mas seu salário aumenta 10%, cada unidade
produzida ficará cerca de 5% mais cara.
Com a economia aquecida estes custos são
passados para o consumidor, em particular nos segmentos menos sujeitos à
concorrência com produtos internacionais, tipicamente os serviços, que, não por
acaso, têm sido o principal foco de pressão inflacionária no país.
Dito de outra forma, quando a economia cresce, a
menos que saia de uma situação em que o desemprego seja tão elevado que os
salários não subam, a inflação se acelera. Não é por outro motivo que BCs bem
sucedidos no quesito inflacionário apresentam o comportamento acima resumido.
Agindo desta forma retiram o combustível que alimenta o fogo inflacionário
quando a economia se aquece e o injetam de volta quando a temperatura cai
abaixo daquela definida como ideal.
No caso brasileiro, em particular, salários vêm
crescendo ao ritmo de 8 a 10% ao ano, na comparação ao mesmo período do ano
passado, refletindo um mercado de trabalho já apertado, como expresso na menor
taxa de desemprego dos últimos anos, em torno de 5,5%, segundo o IBGE.
Como argumentei na minha última coluna, contudo,
se o crescimento se acelerar, digamos, para os níveis de 4% a 4,5%, como
almejado pela equipe econômica, o desemprego deve se reduzir adicionalmente,
provavelmente para um patamar da ordem de 3,5% no ano que vem. Não é necessário
grande esforço de imaginação para concluir que, em face do aperto adicional do
mercado de trabalho, o crescimento dos salários será ainda mais rápido do que
hoje.
À luz disso, o crescimento da produtividade
teria que ser astronômico para evitar que isto se traduzisse em novas pressões
sobre custos e preços. Não há qualquer fiapo de evidência sugerindo que isto
seja possível. A historinha do crescimento “pró-cíclico” da produtividade segurando
a inflação é, portanto, torcida ou mistificação. Em qualquer caso não é base
para formulação de política econômica.
A
produtividade pró-cíclica cura tudo zifio
(Publicado 17/out/2012)

14 thoughts on “Torcida ou mistificação

  1. O "raciocínio", segundo um colega heterodoxo, vem da Lei (sic) de Kaldor-Verdoorn. A formalização do argumento seria assim: p = w/PMgL ==> passa o log e deriva em relação a t ==> pi = gw – gPmgL. Se quando o produto cresce, gPmgL>0, o que, dado rigidez de salarios nominais no curto prazo, haveria uma queda da inflação…
    Já me causa espanto o argumento formalizado do Nelsão utilizar teoria micro convencional. Uau! E ainda usa uma igualdade de equilíbrio…Achei que "equilíbrio" não existisse…
    De cara, sabemos que a hipótese de produtividade crescendo mais que os salários é falsa para o período de análise. Mas digamos que fosse verdade que os salários crescessem menos que a produtividade, eu pergunto: pq as firmas não aumentavam antes a produção? Responde pra mim, por favor?
    Daniel

  2. Alex, li que a atração de profissionais de outros países para o Brasil tem aumentado. É relevante? Nao é engraçado limitarem a importação de produtos para garantir empregos e começamos a importar trabalhadores?

  3. "há evidências fortes que, à medida que o produto (e o emprego) ultrapassam determinados patamares o crescimento do salário tende a ser maior que o crescimento da produtividade, pressionando os preços. ".

    Poderia mostrar por favor tais evidências fortes?

  4. "para que serve o intervalo da meta de inflação?"

    Serve para acomodar ex-post os choques que não previstos quando da calibragem da política monetária.

    Para usar uma imagem que ouvi pela primeira vez do Ilan, o BC é como um arqueiro: ele mira o centro da meta e solta a flecha.

    Como há defasagens na ação de política monetária ele solta a flecha uns 9 meses antes dela chegar ao alvo. Neste meio tempo há choques (de demanda e oferta, positivos ou negativos) que desviam a seta do alvo, mas ela é considerada, ex-post, no alvo se dentro do intervalo.

    O que o BC está fazendo é mirar a seta fora do alvo, dado que até o final de 2013 e 2014 há tempo mais que suficiente para a política monetária fazer efeito. Dado o seu histórico (tipicamente a inflação desvia para cima das previsões do BC alguns trimestres antes), deve acertar ainda mais acima da meta.

    Abs

  5. Para controlar a inflação, não seria tão mais simples se o crescimento da base monetária ocorresse de forma controlada em torno de 1% a.a?
    O crescimento da base monetária no Brasil é simplesmente absurdo. É claro que para isso ocorrer o governo tem que gastar menos…

  6. Acho que o Nersão foi mal entendido, ele quis dizer que os empresários mantém os empregos, mesmo estando ociosos, por terem fé no aumento da produção futura, para isso aceitam até elevar os salários acima de suas expectativas de produção. Nobel pra ele gente!!!

  7. No tema torcida ou mistificação, a queda da selic abaixo de 9% se deveu a uma boa dose de torcida por parte do BC. Mas esse último corte de 25bps é mais duro, consigo nem na base da torcida justificá-lo. Pode escrever: esse corte será a azeitona que vai dar indigestão. Se tivesse ficado em 7,5%, o IPCA iria convergir à meta, sem dúvida. Agora já não sei mais…
    Maradona

  8. Os salários não podem estar crescendo enquanto os lucros encolhem, numa distribuição diferente do produto? Não me parece totalmente alarmante que o crescimento dos salários seja maior do que o crescimento da produtividade, embora isso tenha de ter um limite.

    Agora, crescer a economia acima da produtividade, daí somente com incorporação de fatores, como mais trabalhadores, o que já parece estar no limite, porque a essa remuneração atual o desemprego é muito baixo.

  9. Falando de inflação, me parece bastante claro que, na verdade, não há um compromisso do BC com o centro da meta. O compromisso do BC, se houver, consiste em apenas deixar a inflação abaixo de 6,5%. Para eles parece ser um bom número. Isso quando não passa de 6,5%…

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