Assim é. Por Wilson Palhares
ASSIM É
(Um ensaio satírico histórico-filosófico)
Wilson Palhares
A semelhança da sucessão de flagelos como o ciclone de 17 de abril, o terremoto de 12 de maio de 2016 e o permanente tsunami que atingiram o Haiti com personagens e fatos da vida real brasileira é mera coincidência
Naquela manhã cálida de outono, o irrequieto Dennis D’Artagnan acordou suando em bicas. Tivera durante o sono terríveis pesadelos: cercavam-no ferozes jararacas, zédirceus, dragões da maldade (vermelhos), enxames de corrosivos corruptus roedores do erário nacional e outros monstros mitológicos malfazejos.
No mau sonho, o bravo espadachim lutava embalde contra as hostes malignas. Sentia que estava sendo levado à derrocada ante o avanço daqueles seres que formam a legião dos soldados das trevas. Por isso acordou arfante, como se tivesse acabado de sair de desabalada carreira, perseguido em densa mata por algum felino que o quisesse devorar. Notou então, aliviado, que estava desperto, são e salvo. Até pimpão, como sempre.
Entreabriu o postigo do tapume com que vedava a olhares cúpidos sua figura atraente quando em repouso na alcova, constatou que não havia mouros na costa e tampouco viv’alma no dormitório de sua suntuosa casa mourisca e pôs-se em pé. Rapidamente despejou numa bacia de prata a água límpida que armazenara numa igualmente argentina jarra e fez as abluções matinais. Em seguida, na mesma rotina cristã com que respira, encetou seu desfilar de orações de agradecimento ao Senhor por tudo de bom que Ele lhe deu e dá – a começar por tê-lo acordado naquela manhã e, assim, afastado a figura hedionda do Grande Molusco de Nove Tentáculos, o AntiCristo, a encarnação de belzebu, o Quatro Bestas do Apocalipse.
Aliviado, tomou o desjejum, no qual, além de ovos, presunto, queijo do reino, fruta-do-conde e geleia de mocotó, se incluem (diariamente) um revigorante chá de nó-de-cachorro e um copo alto de Gatorade. Deslocou levemente a cortina de voil que dava para o mural fronteiro à janela, em que era reproduzida num mosaico a Baía de Cannes, e disse aos cordões de sua camisola: “Pensar que daqui de Farófia, deste pequenino fim de mundo em que só se produz milho e pamonhas, nós, procuradores-mosqueteiros, estamos passando a limpo o país. Que felicidade!”.
Ato contínuo, desvestiu a indumentária e a touca de dormir, saiu das pantufas, trajou as ceroulas e o calção de cetim negro que ama ostentar ao agir como procurador implacável, abrigou-se em sua sedosa camisa branca, imaculada como sua alma, e tomou do encosto de uma cadeira a capa de combate com que ensaia sempre o uso de sonhada toga (“algum dia, que virá em breve”) no Supremo Tribunal Federal, quando não o usufruto da curul presidencial.
Aquela peça guardava certa semelhança com a sobrepeliz que os clérigos levam sobre a batina, símbolo da ligação da alma do bravo Dennis com as coisas clericais, não obstante sua ojeriza a padres e a qualquer coisa ligada à Igreja Católica. Desta, a única tolerância que guarda é o movimento que vem sendo levado por seus admiradores fieis junto à Congregação dos Santos, em Roma, para beatificá-lo, canonizá-lo e, no momento certo (infelizmente após seu passamento), santificá-lo.
Mas aquela não era uma capa qualquer. Era uma capa de combatente, de mosqueteiro, que tinha não só a virtude de espantar à vista os mais renhidos políticos desonestos e homens de negócios escusos como levava, intrínseco, altíssimo valor sentimental. Fora montada em puríssima seda do Oriente por sua imaculada mãe (“aquela vaca”, na linguagem desabrida dos desafetos de D’Artagnan). Ela tomara o cuidado de aplicar como debrum na peça rendas belgas encomendadas especialmente para esse fim em Bruges. Desse modo, quando dobrada, a capa poderia sugerir tratar-se de uma calçola feminina daquelas encontráveis em porno-shops da Belle Époque, não tivesse másculo detalhe, também brotado das puras mãos da genitora d’artagnesca. Esse pormenor era vistosa cruz suástica por ela própria bordada, com desvelo, nas noites que subtraía à permanente admiração do retrato de seu rebento. Dennis jogou sobre os ombros a delicada peça, dizíamos.
Em seguida, devidamente ajaezado, tomou da etagère e acoplou à cintura o florete – “a Excalibur”, como a chamava, ainda que aquele gládio da Justiça não fosse gládio nem tampouco espada, como a arma do Rei Arthur – e saiu do recinto de modo a exibir à patuleia seu elegante deambular, seu porte ereto, sua tez corada e de rígido turgor. Pretendia ir à rodoviária ou à Gare du Nord (assim chamava a estação do Brás, antiga Estação do Norte, no largo da Concórdia de Farófia), mas a greve geral marcada para aquele dia vingara. Não havia sequer um ônibus, um tílburi, uma caleche que pudesse transportá-lo. Ante esse vazio, e dada a ausência de público que assistisse a seu desfile em horário tão matinal, partiu a pé no caminho de Guermantes em direção a sua cotidiana lide justiceira. Mesmo não possuindo cavalo, pôs-se em carreira que entendia ser galope mas que seus inimigos chamavam de trote – e de burro.
Indiferente ao que dele pudessem pensar, nosso mosqueteiro seguiu naquele dia rumo à elaboração de outro powerpoint, arma com que costuma substituir o mosquete para arrasar gigantes adamastores e monstros polifemos. Registre-se em seu louvor que, nessa construtiva missão, não descuida de, nos intervalos, batalhar pela conquista para si de uma que outra quota no Programa Minha Casa Minha Vida e de brindar com palestras eivadas de verdades peremptórias plateias cada vez mais numerosas e provedoras de numerário destinado a obras beneficentes, como uma aposentadoria (para si) confortável antes que venha o final dos tempos, ameaça que brande ao microfone em suas pregações dominicais (estas, gratuitas, em todos os sentidos), na condição de bispo da Igreja Pentecostal Venha-a-nós.
Na jornada que aqui se narra, concluído o powerpoint do dia, Dennis prosseguiu com denodo no arrostar o desafio com que os ímpios provocavam com suas bandeiras vermelhas os patriotas democráticos, qual fossem, estes, animais corníferos. Tentou ingenuamente levá-lo à apreciação do todo poderoso Procurador Geral da República em Banânia, Ronivaldo Jacquoud, o Jacu, que o recusou in limine mesmo sendo fartamente documentado, a começar pelo parecer indubitável do ínclito esbirro policial Inspetor Javert.
D’Artagnan tentou convencer o procurador que lá da capital rege as ações escorreitas a ler o argumento probatório que escrevera no século XIX o jurista Victor Hugo ao fundamentar a perseguição ao ex-galé Jean Valjean que ele, D’Artagnan, já usara em power point pretérito para comprovar o envolvimento do Grande Molusco (“O Nonidátilo”) em subornos e compras mal disfarçadas de uma chácara em Araçoiaba da Serra, um apartamento duplex em Diadema e um instituto e uma academia de pilates com seu nome em Cap d’Antibes: “Esse é um ex-calceta, sabidamente ladrão, falsário, escalador de muros e dono de caráter acima de suspeito” (V. Hugo, in Les Misérables, Edições Gallimard, Paris, 1854). Mais: fundamentou aquele demonstrativo eletrônico com extensos parágrafos do livro sagrado Mein Kampf e de trechos irrefutáveis de clérigos medievais que combateram o Mal em seu tempo, como se pode constatar nos sintéticos exemplos a seguir:
“Os mais repugnantes atos venéreos são levados a cabo pelos demônios, não com vistas ao deleite, mas para a poluição das almas e dos corpos daqueles que atuam como íncubos e súcubos” e “Os atos dos bruxos somente são conhecidos pelas confissões que fazem sob tortura. . .” (H. Krammer e J. Sprenger, in Malleus Maleficarum – O Martelo das Bruxas, Edições Vaticanas, Roma, Anno Domine 1140). E ainda: “Se um acusado de propagar heresias a respeito do celibato dos padres e da autoridade do Papa e na masmorra se recusar a confessar sua pecaminosa conduta deve sofrer tormentos suficientes para castigá-lo pela grave falta que cometeu.” (N. Eymerich, in Manual dos Inquisidores, Edições Vaticanas, Avignon, A.D. 1376). Grifos nossos.
— Não pode a Justiça basear-se em suposições, deduções, achismos – sentenciou o procurador geral. – Trate de achar provas, determinou O Jacu. – E lembre-se: Isso vale para quem foi e para quem é, para atual e para ex, pau que bate em Chico bate em Francisco. Provas, ache provas!
Não as tendo achado, achou por bem o valente ir cantar noutra freguesia, também localizada na capital do país. Ali procurou Nestor Fagundes, O Bagre, ministro bocudo do STF que, segundo se ouve dizer, faz qualquer negócio, desde que seja de seu interesse e/ou de seus amigos. Ainda ao raiar do sol, bateu à casa do magistrado, que teve a deselegância de atendê-lo à porta mal saído da cama, de cueca, sonolento, com ramela nos olhos e trazendo às mãos um amarfanhado de papel toalha onde se vislumbravam vestígios de esperma.
Seriam estes fruto de irrefreáveis ejaculações ocorridas durante recorrentes e insistentes sonhos lúbricos do togado senhor com a sensual advogada Eponina Frescal, a Pomba-Gira das Arcadas, trêfega inspetora de mictórios públicos, exímia sílfide-performer de dança do ventre e esmagadora de cabeças de cobras. Difícil deduzir que outro tipo de desgaste poderá daí advir sobre a já maculadíssima reputação ilibada de Nestor Fagundes, de resto (agravante) coadjuvado por seu par e pupilo Gilles Fúcsia Bougainville, O Jiló, ou Brinco de Princesa do Judiciário.
O certo é que o incansável cruzado arquitetou rapidamente uma forma de dali dar às de vila-diogo, estimulado entre outras razões pelo hálito pestilento do tribuno. Afora isso, este reiterou de viva voz a preocupação de alinhar seu nome entre os que figuram com destaque no panteão dos grandes vultos da história pátria, como Aranha (Oswaldo), Barata (Cipriano), Borboleta (Dirceu), Camarão (Felipe), Sardinha (preferido pelos brasileiros há mais de quatro séculos), Tatarana (Riobaldo) e outros bichos. O Bagre deixou claro não ter a pretensão de figurar entre os top ten do hit parade judicial, como de direito pela obediência à ordem (alfabética), que lhe faz caber o privilégio, dada a posse da inicial B ou mesmo da A, de Anta, outro de seus inúmeros epítetos. Conformar-se-ia, mesóclisemente, a constar do final da lista, graças ao Z de Zebra, como também o descrevem inimigos gratuitos.
Mas não é isso que aqui importa. Importa mais saber o que disse aquele cujo apelido de referência fluvial remete à desenvoltura com que o espécime se movimenta em águas turvas e lamacentas. A respeito da motivação que teria levado O Jacu a antepor muralha indevassável à investida do mosqueteiro, ponderou O Bagre que o PGR estaria às voltas com um caso de fitas gravadas no Palácio Residencial, chegadas às suas mãos independentemente dos esforços do general Estigarribia, chefe da CIA tupiniquim, e de um dos vários ministros engavetadores do STF para impedir que isso tivesse ocorrido.
As referidas gravações, que poderiam complicar ainda mais a atualmente conturbada situação política do País, teriam ligação com rumores que embasariam a existência de fantasmas na moradia da Primeira Família. Não bastassem visões tidas por habitantes da casa de vultos e ectoplasmas em horas tardias e recantos ermos no edifício, as gravações comprovavam sua materialidade.
A verdade é que não foi de todo bem sucedida a lépida ação conjunta de Estigarribia, O Novo Leônidas, entregador de espias forâneos à sanha da choldra, e do ministro inominado, de cognome ainda misterioso “Caveira Vermelha”, para ocultar as fitas e dar fim a qualquer processo de investigação antes mesmo que se iniciasse. O agente da PF que grampeou entre outras dependências o que seria um ninho de amor às ocultas do principal interessado (cabendo aqui colocar as devidas aspas) foi rebaixado em seu posto e enxotado para uma delegacia remota da estropiada meia-ilha. Recebeu a sugestão de calar, com a lembrança de que em boca fechada não entra formiga.
Não foi suficiente para blindar um vazamento, captado pelo solerte repórter, comentarista político e membro ereto da Academia Haitiana de Letras Merdal Mangueireira, ao qual nada escapa, a não ser nas horas mais impróprias flatos e eructações à mesa (deste, dizem que todas as noites, antes de vestir o pijama para deitar-se, enverga o fardão da academia e fica horas a se contemplar ao espelho, com chapéu de dois bicos na cabeça, espada à cintura e tudo mais).
Uma testemunha ocular – ou melhor, auricular – que ouviu uma das gravações, supostamente feita em diálogo (se é que se pode chamar assim) entre importante moradora da casa e o açougueiro fornecedor de carne, músculo e propinas destinadas ao apetite pantagruélico dos que ali usufruem de banquetes, churrascos e surubinadas, frequentador em altas horas do lar presidencial, deu conhecimento a pelo menos uma pessoa, de modo que tudo deixou de ser segredo. Dos supostos diálogos, reproduzidos de péssima gravação técnica, feita provavelmente em gravador Geloso, o anônimo ouvinte conseguiu reproduzir o seguinte:
— . . . pois não te disse, minha cabrita, que ia compensar a (inaudível) do cara, pelo qual tenho profunda amizade?
— . . . e concordo. Você, como dono de açougue, comprovou que entende mesmo como (inaudível) dos tais prazeres da carne. . . Você (inaudível) muito melhor do que ele – e ainda por cima (N. da R.: principalmente) tem um belo (inaudível). . .
Também segundo a narrativa desse depoente oculto, o que as gravações – não está claro se feitas na moradia ou no gabinete de trabalho (chamemos assim) do primeiro mandatário – reproduziam eram gritos e sussurros “que poderiam ser mais adequadamente simbolizados pela onomatopeia gráfica das histórias em quadrinhos, sobretudo as cabíveis nos catecismos de Carlos Zéfiro. Assim ele as apresentou ao acadêmico Merdal:
— Arf, arf, arf. . .
— Aaaaah! Aaannnn
— Fuc, fuc, fuc, fuc. . .
— Slurp! Chlép, chlép, chlép!
— Chup,chup, chup, Mais! Mais!
— Ummmm. . . Ummmmm. . .
Ao ouvir – por assim dizer, consta que, há rumores a respeito — essa troca de expressões idiomáticas insinuadora de trocas outras, Dennis D’Artagnan saiu novamente a galope (ou a trote de burro, como dizem os adversários), desta vez de volta a Farófia, que embora pequena, remota e acanhada é uma usina de processos devastadores contra a devassidão e portanto temor constante, entre outras entidade malignas, da organização Trezentos Picaretas & Cia. Foi à procura do também empunhador de gládios da justiça, no caso uma Espada de Dâmocles, Herodes Pizarro Torquemada, o Capitão Limpa Fossa, que para ouvi-lo teve de interromper, visivelmente desagradado, uma sessão de felação premiada que no momento mantinha com sua prezada senhôra, Juliana Torquemada, a Loba da Primeira Vara.
O magistrado – prestigiado também por sua atuação como empreendedor à frente da rede de casas de pasto Reino dos Risoles, Empadas e Coxinhas (tendo para tal um testa de ferro, já que as normas legais e éticas o impedem de assumir a propriedade), líder nacional na produção de pamonhas – ficou horrorizado ante o que ouviu:
— Impossível, improvável e inadequado! – explodiu. – A inconsistentemente acusada, parte receptiva da suposta transa-ação, é, de papel passado e testemunhos incontestáveis, exemplo de mulher bela, recatada e do lar. Não podemos nos ater nos autos a convicções e à teoria do domínio dos fatos, por mais que essa narrativa indique ter o igualmente suposto comparsa na ocasião tido pleno domínio, de fato. Mas há que dar a ambos o benefício da dúvida, sobretudo em se tratando de questão que não só envolve figuras de primeira linha de nossa elite política e social como também a segurança da própria República.
— Mas. . ., mas, excelência – gaguejou o perdigueiro das verdades deduzidas e incontestáveis.
— Não tem mas nem meio mas – interrompeu-o o titular daquela comarca rural.
Deste não se conheciam absolvições. De sua folha corrida constam exclusivamente sentenças condenatórias, desterros, banimentos, reclusões e excomunhões. Ensinou então o juiz da roça:
— Não tomes a nuvem por Juno. Tantas vezes vai o cântaro à fonte que acaba por se romper. Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere.
O mosqueteiro tentou ainda brandir comprovações:
— Data vênia, excelência, tomo a liberdade de invocar os incontestes argumentos dos educadores-jurisconsultos brasileiros Alexandre Frota e Fernando Holliday , que já demonstraram ser preciso defender com unhas e dentes a moral e os bons e prazerosos costumes.
— Isso serve para arrimar o processo contra nosso alvo preferencial, o indigitado Fingers, se você me entende. Assim como as peripécias de outros biltres renomados, nada tem a ver com a questão em tela. Se os envolvidos se envolveram em atitudes malsãs e cometeram malfeitos, fizeram-no entre quatro paredes, e ensina Molière que não é pecar quando se peca em silêncio. Tivessem mais cuidado e tivessem em conta que as paredes têm ouvidos – no caso, eletrônicos.
— Mas. . . – titubeou o espadachim. Mas. . .
— Basta! – bradou o magistrado-chefe daquela usina de punições. – E comandou, peremptório:
— Vada a bordo, cazzo!
D’Artagnan ficou estarrecido, mas não ousou afrontar a ira daquele que do Olimpo parecia atirar contra si os raios de sua ira divina. Primeiramente, absorveu todos aqueles ensinamentos jurídicos e filosóficos, que viver é aprender. Ainda hesitou, querendo aproveitar-se da obsessão do judicioso julgador que parecia configurá-lo como verdugo do reu, para citar:
— O meliante em questão baseia sua ação deletéria, excelência, na afirmação de Hegel in Manifesto Comunista de que se deve submeter todo o poder aos sovietes. E o faz para receber propinas!
— Nada vem ao caso! – contrapôs no auge do mal-estar o interlocutor. – Que tem a ver o cuscus com as caldas? O que interessa são indícios, delações verbais e convicções, que o Direito moderno eleva ao nível de provas.
E engrossou o caldo de recomendações inquisitoriais:
— Provas! Traga provas! Sem elas serei obrigado a apoiar-me apenas em minha convicção, o que a bem da verdade já me basta.
D’Artagnan enfiou então o rabo entre as pernas e retornou a seu tugúrio, num andar vagaroso, que permitia no entanto ouvir-se tristonho pocotó, pocotó, pocotó. . .
A tudo isso, o consorte da suposta casada infiel, que deveria ser a personagem central desta narrativa, nada disse nem lhe foi perguntado. Ante a tempestade que desabava sobre sua cabeça não foi além do silêncio. Nihil! Nada! Nothing! Niente!
Ou, em sua costumeira linguagem futurista:
— Necas de biribitiba!
Aquele cujos olhos nada viram e cujo coração, portanto, nada sentiu cuidava com crescente intensidade de manter incólume sua cadeira de estimação. Providenciou uma viagem – uma fuga temporária – às Ilhas de Langherans, para em doce enlevo esperar a tormenta amainar. Não amainou, mas tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes, com mal disfarçado apoio velado do Grande Pavão, enviado (em forma de bula papal) daquele apartamento que não é seu mas ocupa esporadicamente na avenue Foch, em arrondissement de baixa numeração na Cidade Luz.
Melhor assim, em nome da estabilidade política e da manutenção das instituições e das aparências. Deve-se levar a cabo a natureza das coisas, segundo a qual (se o caso for com ele) o marido é sempre o último a saber. Sim, pela lógica irretorquível de que, quando o marido fica sabendo, a festa acaba.
Tirante tudo isso, permanece o dilema: o Haiti é aqui/o Haiti não é aqui.
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WILSON PALHARES – É JORNALISTA- Diretor da Revista EmbalagemMarca