Adeus, Moreno. Adeus, grande Moreno.
Nélson Rodrigues que me perdoe, mas nem toda unanimidade é burra. Jorge Moreno, que morreu nesta quarta, dia 14, é a prova disso: um repórter político confiável, preciso, pronto para publicar boas histórias e fatos reais, mesmo que fossem desagradáveis para algum político ou partido. E, mesmo sabendo que Moreno não os pouparia, se tivesse certeza dos fatos, todos confiavam em Moreno. Todos, da ala esquerda xiita do PSTU ao mais extremado bolsonarista, gostavam daquele repórter simpático, agradável, que fazia todas as perguntas necessárias sem ofender o entrevistado. Moreno sempre jogou limpo; não bajulava os responsáveis por vazamentos ilegais, não se jogava em campanhas contra determinadas pessoas. E provou que, para ser um grande repórter investigativo, não é preciso fazer cara de bravo nem “fazer questionamentos” à fonte. A propósito, “tenho alguns questionamentos a fazer” é sinônimo de “preciso fazer-lhe algumas perguntas”. Moreno dominava como poucos a arte da gentileza, da boa educação, sem jamais deixar de apurar a fundo tudo aquilo que publicava.
Bela figura, Jorge Bastos Moreno. Por contingências profissionais, tive pouco contato com ele – passei boa parte de minha vida de jornalista dentro das redações. Mas o pouco contato não impediu que Moreno sempre atendesse ao telefone, sempre tivesse uma frase agradável, sempre se empenhasse em esclarecer o que lhe era perguntado. Ele me apresentou, em Brasília, políticos de todas as posições, com quem conversava sempre; e todos considerando que almoçar ou jantar com Moreno, mais do que uma oportunidade de ganho político, era um prazer, um compromisso a que valia a pena comparecer.
Descanse em paz, Moreno. Se é verdade que alguém só morre quando é esquecido, você continua vivo, inspirando os bons repórteres. Só não está escrevendo – mas há quem escreva com amor e brilho quando fala de você.
Hoje, li com admiração o belíssimo texto de uma repórter que já tinha me chamado a atenção na GloboNews: Andréia Sadi. Jorge Moreno se dava bem com todos, mas escolhia com cuidado aqueles a quem considerava seus herdeiros. O texto de Andréia Sadi, publicado em O Globo:
“Oi, é Andreia Sadi? Eu sou o Jorge Bastos Moreno. Queria que você viesse almoçar domingo aqui na minha casa no lago norte, vai ter um grupo de jornalistas. Você confirma?”
Eu confirmei. Cheguei lá, Moreno sendo Moreno, me pegou pelo braço e saiu me apresentando para todo mundo com intimidade e como a repórter recém-chegada de São Paulo em Brasília, e que ele queria conhecer porque tinha “lido minhas matérias na internet” e ouvido falar pelos coleguinhas. Eu conhecia a fama do Moreno sobre mulheres e fiz a egípcia. Curiosa como ele, topei mesmo assim porque queria conhecer a figura.
Quando eu tava no portão para ir embora, ele “confessou” (palavra que ele amava e usava todo dia comigo) num tete-a-tete: “olha, a verdade é que eu queria saber se você era bonita, porque tinham dito que sim. Mas eu não achei não”
Eu gargalhei, achei engraçada a sinceridade e ele, surpreso com a minha reação, repetiu: “é verdade! Você não faz o tipo de mulher que acho bonita!” Nossa história começou assim. Ele me convidou para fazer a pesquisa do livro de Dona Mora e aí a gente grudou. Eu tinha muitas dúvidas sobre a época que eu não vivi e que ele foi testemunha. Então, era dia e noite noite e dia contando histórias desde então. Ao longo dos anos, só mudou o tema.
Falava mais com Moreno do que com qualquer outra pessoa. Todos os dias, mil vezes ao dia. Ele amava telefone (eu odeio, era prova de amor). Nossa relação era de falar a verdade na cara, de falar tudo que pensa sobre o outro e sobre os outros. Sem filtro, sem censura. De contar segredos de liquidificador que começavam sempre assim: “você jura que não vai nunca falar pra ninguém?” “Fala, logo que eu tenho que entrar no ar!!” E lá se somavam confidências que prometemos levar para outras vidas.
Ele que era ele, liberal e ousado de corpo e alma, ficava escandalizado com algumas coisas que eu falava. Me achava “paulista demais” pra algumas coisas e brincava: “você tá muito moderninha pra quem é paulistinha!” Eu ria. Ele era conservador comigo. Uma certa coisa de “você, não: você não pode”. Coisa de pai, ele dizia.
Falei ali em cima “Nossa história” porque não era amizade, era relação de pai e filha mesmo. Ele foi mais que um pai pra mim. Uma vez, ainda no apartamento minúsculo do Leblon de 45 metros quadrado (que ele enfiava 50 pessoas sabe-se lá como), ele confidenciou: “se eu tivesse tido uma filha eu queria que ela tivesse sido como você. Mas queria que ela fosse bonita!”
E gargalhamos. Ele tinha essa coisa do culto à beleza, de elogiar- todo mundo sabe, todo mundo vê. Pra mim, no entanto, falou poucas vezes pessoalmente. Postava nas redes sociais, fazia troça com isso porque adorava encher, mas me achava “menina, muito alta”. E falava: “você é jornalista antes de ser mulher, antes de ser qualquer coisa. Vai ser repórter até morrer porque tá no seu sangue, que é como o meu”. Eu brincava: “é sangue tipo o que?” Ele: “tipo repórter, minha filha. Você apura, publica e depois lembra que precisa ir no próprio casamento”.
O papel Moreno na verdade, pra mim, foi o de ser meu maior mestre. Meu melhor e mais mala crítico -carrasco, exigente, impiedoso- com que eu tive o prazer e privilégio de conviver.
Intelectualmente, principalmente, fundamentalmente. Quando ele falava que fulano/a era bonito/a e eu não ligava, dava a mínima, ele falava: “você é estranha! Não gosta do belo, tem tesão intelectual!” Eu: “isso, aceita que dói menos”. A gente tinha fascínio pelas mesmas coisas: o jornalismo político, o Gil, o Caetano, o Rio, a história dos outros, os segredos de terceiros. Gerações de diferença nunca foram motivo para separar as nossas horas e horas madruga adentro ou começo de dia falando sobre as notícias.
“Tá acontecendo alguma coisa? Você tem a informação do que eu quiser, Andréia Sadi?”, zombava ele usando uma gafe minha na GloboNews, todo dia 08h da manhã, quando me ligava. “Prenderam o Henrique Alves!” “Putaqueopariu, tá lascado! Tira do viva-voz que me sinto exposto, é todo dia isso!” “Não dá! Tem ninguém aqui. E tô me maquiando e colocando a lente, beijo tchau!”
Ele tirava sarro do “BEIJO TCHAU” porque dizia que eu era impaciente, ansiosa. Eu retrucava: “claro, pq você é o Budha..” “Me respeita, menina!”
Moreno gostava muito de falar ao telefone. Eu odeio telefone, só falo no zap. Mesmo assim, ele ligava 20 vezes e mandava zap porque eu não atendia: “URGENTE, Andréia Sadi! BOMBA!”
Eu ligava na hora. Ele: “interesseira, to de sacanagem!” Eu ria e falava: “jura que vou cair nisso eternamente?”
Ele: “e você nunca vai atender de primeira?” “Moreno, um de nós tem que trabalhar e sou eu, como sabemos!” E BEIJO TCHAU.
De todas as lições que ele me deu- duras, que me fizeram chorar muito porque ele (quase) sempre tava certo- guardei alguns episódios em que depois ele recuou. E eu amava jogar na cara dele.
Quando Dilma ia indicar Lula ministro, falei ao vivo na GloboNews que ela ia fazer isso. Ele me liga 10 segundos pós o vivo, antes das 08h da manhã me dando um senhor esporro: “meu amor (ler com voz de Moreno), nunca mais repita isso! Onde já se viu um ex-presidente ser subordinado ao presidente da República! Quem te falou isso está fazendo balão de ensaio! Você foi ingênua demais! Esqueça isso”!
Bati o pé. A fonte era segura. Ele queria saber, recusei contar. Somos taurinos, pouco teimosos. O resto da história vocês sabem. E ele, depois: “isso é o fim do governo. Tiro no pé. Lula não vai assumir porque o STF não vai deixar, as ruas vão enlouquecer”. Ele sempre tava certo, como eu disse.
Cruel, também como eu disse, ele odiava uma blusa verde que eu usava na TV. Sempre que tava brava com ele, colocava. Ele ligava e falava: “tá! Chega, não to mais puto porque você não atendeu! Dá pra igreja, passa pro cachorro essa blusa, um horror! Você fica medonha!!!”
Eu ria, porque ou era isso ou tocar um tango argentino.
Chorei muito com ele também. Chorei a dor de outro amor, chorei as sacanagens da vida. Chorei as inseguranças, o medo de perdê-lo, de ele não ver os filhos que eu ainda vou ter.
Um desses momentos de medo foi a duas semanas do julgamento do TSE. Me ligou dizendo que tinha passado mal, que estava em contato com o médico, porque eu cobrei se ele tinha ido ao hospital, se o Nilsinho estava com ele. Queria informações. Eu desesperei longe. Quando liguei para ele de novo, não atendeu. Liguei em casa. Dona Kelly disse que ele estava repousando. Fiquei mais tranquila. Quando ele retorna, mais tarde, eu dou aquele esporro porque come muito, não se cuida, essas coisas e emendo: “putaquepariu, não vai me dar trabalho na véspera do julgamento do TSE!”
Ele: “mas vai cassar? Vai, nada!”
E desatamos a falar da nossa paixão.
Moreno gostava de sacanear. Uns dois meses antes disso, ele fez a senhora festa que ele queria fazer de niver. Dei meu jeito e fui, havia prometido. E ele cobrava, nossasenhora. No dia seguinte da festança, ele liga (sempre isso), eu no taxi, não atendo. Ele zap: “você ta onde?” Eu devolvo com esta foto completamente acabada da festa, 3 horas dormidas e já indo para o aeroporto: “eu estou embarcando de moreno futebol clube porque esqueci blusa de dormir p/viajar”. Ele POSTOU a foto, puto porque falei que a blusa com a cara dele era pra dormir, e eu liguei brigando pela postagem! Era quebra de sigilo! Hoje eu reposto por livre e espontânea vontade em homenagem a ele.
Mas eu também gostava de sacanear.
Recentemente, ele se gabava de que tinha composto uma música com Gil, sim, GILBERTO GIL, e eu brincava: “ainda bem que você chegou para ajudar o GILBERTO GIL na carreira dele, dar uma mãozinha nas composições. Ufa, a música brasileira agradece”. Ele: “você ta zombando de mim? Me respeita, menina!”
Numa dessas milhares de ligações matutinas, um dia eu atendo “hello!” E ele responde, cantarolando: “amor, meu grande amor. Não chegue na hora marcada”Eu devolvi, rindo: “benzadeus! Alguém se deu bem ontem à noite..”Ele: “me respeita, menina! Que que é isso!”
Respeito, Moreno. Mestre, gênio, que me deixou aqui com o coração partido, dilacerado, aos prantos. Me deixou com mil planos e sonhos combinados que vou ter de dar meu jeito agora pra tocar porque eu prometi que seria forte. Antes de tudo, forte.
Mas mais que respeito, Moreno. Te amo, “amor, meu grande amor”, amigo, pai, tudo: vai lá fazer festa na laje do céu.
Belo artigo seu, Carlinhos. E linda despedida da Andrea Sadi (Essa menina é a melhor coisa que apareceu na tevê nos últimos tempos”.
Artigos excelentes, o seu homenageando o colega, e o da Andrea relatando sua amizade. Também acho que a Andrea é a melhor novidade na tv.