Beijo da morte

Embora o déficit externo
de setembro, US$ 2,6 bilhões, tenha sido o mais baixo registrado no ano, as
contas do país acumulam nos últimos 12 meses déficit pouco superior a US$ 80
bilhões (3,6% do PIB), aumento expressivo com relação aos US$ 50 bilhões (2,2%
do PIB) registrados nos 12 meses anteriores. Números ainda mais altos não podem
ser descartados no ano que vem, pois os fatores determinantes da sua expansão
ainda estão em pleno funcionamento e nada indica uma interrupção deste
processo.
A começar pela
discrepância entre o desempenho da demanda interna (consumo, investimento e, é
claro, os gastos do governo) e o PIB. Aquela cresce à frente deste há nada
menos do que 32 trimestres (sem contar o terceiro deste ano), tendo
ultrapassado o valor absoluto da produção doméstica desde meados de 2010.
Como venho apontando há
algum tempo, a capacidade de produção enfrenta gargalos dos mais variados, seja
por conta do mercado de trabalho apertado, seja pela insuficiência da
infraestrutura, seja ainda por outros fatores que se expressam no baixo
crescimento do produto por trabalhador. Neste contexto, adotar – como tem feito
o governo – políticas de expansão da demanda interna, impulsionadas pelo gasto
público e pelo crédito oficial, pouco adiciona ao crescimento do produto.
Pelo contrário, nos
setores em que a concorrência externa é escassa (tipicamente serviços) os
estímulos têm se transformado em combustível para a inflação, que já se
aproxima de 9% neste segmento nos últimos 12 meses. Já nos setores mais
sujeitos à competição internacional (tipicamente manufaturados) o que se
observa é o aumento das importações à frente das exportações, de modo a adequar
a oferta total (produção interna mais importações líquidas) ao consumo
doméstico.
Não por acaso a quantidade
física de importações aumentou pouco menos de 11% até agosto (contra crescimento
de apenas 1% das exportações), o que não pode ser explicado apenas pela
contabilização em 2013 de importações de petróleo realizadas no ano passado.
Incapaz, portanto, de
atender simultaneamente o consumo crescente de manufaturas e serviços, a
produção se volta para os últimos, face à impossibilidade da sua importação,
enquanto a redução do saldo comercial cuida de aumentar a disponibilidade
doméstica de manufaturas. Neste sentido, o aumento do déficit externo não é uma
anomalia: é o resultado natural de uma política de estímulo à demanda quando a
oferta enfrenta restrições variadas.
O problema só não apareceu
antes porque o mundo jogou a nosso favor (na verdade, continua jogando, apenas
não tanto quanto há dois anos). Os preços dos produtos que exportamos (commodities) ainda permanecem 25% acima
de seu nível histórico relativamente aos preços das importações (manufaturas).
Trata-se uma perda considerável em comparação ao observado em meados de 2011,
quando esta relação encontrava-se 40% acima da média histórica, colaborando
para a redução recente do saldo comercial.
Mesmo assim é bom notar
que a contribuição ainda é positiva, correspondendo a algo como 2,7% do PIB nos
12 meses até agosto, contra 3,1% do PIB em 2011. Posto de outra forma, embora a
contribuição menos favorável dos preços externos possa explicar uma parte da
queda do saldo comercial, a maior parcela resulta mesmo da evolução díspar da
produção e da demanda internas.
Considerando ainda que o atual
arranjo de política não deve se alterar (pelo contrário, a recente mudança
retroativa do indexador da dívida de estados e municípios deve induzir a um
forte aumento do gasto público à frente), é apenas lógico esperar déficits
externos crescentes no curto e médio prazos.

Reconciliar este
desenvolvimento com fluxos mais escassos de capitais será o grande desafio em
breve e o provável beijo de morte para nossa mal formulada “nova matriz
macroeconômica”.
Cada dia mais perto
(Publicado 30/Out/2013)

45 thoughts on “Beijo da morte

  1. Se pudéssemos importar serviços da Índia, certamente o faríamos, assim como fazemos com manufaturados da China. Como não podemos, a expansão da demanda gera o aumento dos preços e temos aí um simples e belo processo inflacionário. Tem a indexação do salário mínimo (outro combustível para inflação), que aumenta um dos principais custos de produção muito acima do aumento da sua produtividade. Logo, produzir manufaturas é cada vez menos interessante (e não tem empréstimo subsidiado que resolva isso).

    Não esqueçamos que, assim que o FED espirrar, o BP aqui vai fazer água, e aí vai sr um "salve-se quem puder" (e, infelizmente, acho que não vamos nos salvar)…

  2. Por que agora só reproduz a coluna da Folha uma semana depois ?

    Independência do BC. No Valor de 1,2 e 3 de Novembro (página A.14), a matéria diz que o Presidente do BC faz parte (de forma quase invisível) da coordenação de campanha da Presidenta à reeleição.

  3. "Por que agora só reproduz a coluna da Folha uma semana depois ?"

    O contrato com a Folha agora exige uma semana.

    Quanto à matéria, não li, mas truco. Não por mérito, mas por falta de.

  4. Qual seria a consequência de um déficit externo cada vez maior e o que esse governo deve fazer a respeito? Não entendo bem essa área de contabilidade nacional. O problema da oferta não será resolvido no curto nem no médio prazo,quase nada (ou nada) está sendo feito para o aumento da produtividade e competitividade do país…qual será a consequência de médio prazo para esse problema considerando que o governo não tomará as medidas corretas para lidar com esse déficit crescente?

  5. Perfeito, de fato você antecipou aqui no blog.
    Esta turma conseguiu em dois anos quase quebrar o país. Deram autonomia ao BC para praticar a política monetária racional e responsável (o que prova que antes o BC era subjugado).
    O impressionante é que mesmo assim tem uma turma que teima em torcer ao invés de analisar racionalmente.

  6. O problema do déficit externo é consequencia direta da desindustrialização provocada por duas décadas de políticas neoliberais no Brasil. Por causa da nossa perda industrial, a elasticidade-renda de nossas exportações não para de subir, enquanto que a das importações só aumenta. Por isso, tendemos a sempre importar mais do que exportar conforme nossa economia cresce. Isso é agravado pela sangria de bilhões de dólares provocada pelo pagamento de juros da dívida pública, o que também é culpa da política ortodoxa de juros elevados.

    Por isso, o governo precisa impor novas barreiras protecionistas ao nosso parque industrial, antes que o estrangulamento externo chegue.

  7. "o governo precisa impor novas barreiras protecionistas ao nosso parque industrial"

    O governo deveria tb concentrar mais a solução de eletrólitos na água que nós bebemos.

  8. "…Por isso, o governo precisa impor novas barreiras protecionistas ao nosso parque industrial, antes que o estrangulamento externo chegue…"

    É claro que não!!!

    Simplesmente impor barreiras protecionistas é inóquo, uma vez que as finanças internacionais conseguem asfixiar nossa indústria através do canal do crédito!!! Barreiras protecionistas (não estas tímidas atualmente, penso mais nas políticas desenvolvimentistas do final da década de 70 e da década de 80) devem ser impostas JUNTAMENTE COM O APROFUNDAMENTO DA POLÍTICA DE SUBSÍDIO DE CRÉDITO VIA BNDES!!!! Como muitos já apontaram aqui, esta segunda política também pode ser inóqua, uma vez que pode não gerar efeitos consistentes no setor real da economia (seria só uma transferência de renda). Para dar certo, estes empréstimos DEVEM SER CANALIZADOS SOMENTE PARA UM PEQUENO GRUPO ESTRATÉGICO DE EMPRESAS capazes de gerar efeitos multiplicadores de transbordamento para frente e para trás, adensando e fortalecendo nossas cadeias produtivas!!!
    Saudações

  9. Eia sus, oh sus!

    Dobro o apoio do Alex e defendo, em complemento à proposta do anônimo, um PL para transformar a Lei de Sauer em cláusula pétrea constitucional.

  10. Prezado careca

    tenho insistido nos seus dotes de Cassandra e perguntado sobre SELIC a 10% ainda este ano.

    Esta semana ouvi dos passarinhso verdes do mercado que a taxa poderia ir a 10,25% ou até 10,5%
    ainda em 2013

    Em 2014 a expectativas estão precificando 12% a 13%. Alguns pessimistas falam que pode chegar até em 15%.

    Prezada virgem de Delfos, nos dê uma luz. Teria o mercado ficado louco?

  11. Não aparecia uns idiotas por aqui de vez em quando dizendo que a Venezuela estava bem?
    "Venezuela’s annual inflation rate rose more than expected to 54.3 percent last month, the fastest pace in as many as 16 years, as shoppers scrambled for scarce goods ahead of Christmas festivities."
    Será um pouco de inflação, um governo populista, controle de preços e câmbio, estatização da economia e do setor do petróleo faz bem?
    Dantas

  12. "Em 2014 a expectativas estão precificando 12% a 13%."

    Minha conta dos "forwards" sugerem menos do que isso (em torno de 11.25%). Alguém pode confirmar se a conta está certa (fiz com as LTNs, não os DIs).

  13. Voltei

    Os meus forwards deram
    NTN-B 2035 pagando 6,3% ao ano de juros REAL (+6% de inflação), taí as expectativas de 12%/ano.

    Soma aí o "ataque especulativo fiscal" [sic] (by Arno Augustin)

    Quem diria um dia Alex vc seria classificado otimista e pró-governo.

  14. "11,25 para evitar que a inflação fique acima do teto da meta, ou volte para o centro da meta,no caso 4,5%?"

    Nem uma coisa, nem outra, mas sim quanto o mercado estaria apreçando o "forward" 2014, ie, a taxa de juros que prevaleceria entre jan-14 e jan-15.

  15. De intervencionismos em intervencionismos até virar uma Argentina. Próximo passo? Controle de capitais. Depois? Racionamento e saques.

    Acertas em cheio no diagnóstico, só pecas no remédio. Esse BNDES alavancadaço de nada serve, desde 2008 sendo usado para "medida anti-cíclica" que é pró cíclica, com populismo escancarado da redução de ipi, minha casa melhor e qualquer outra coisa que algum marketeiro inventou.

    Tivesse o Mantega visto que o "problema" do câmbio baixo, não era um problema e sim uma oportunidade de liberar os brasileiros para dolarizarem parte de suas minguadas poupanças e ele teria feito um bem imenso ao país. No final, ouviram o tio Bresser e o nosso amigo palmeirense, "seguraram" o câmbio. Quanto torraram nessa?

    abs

  16. Schwartsman, já lhe ocorreu que a inflação persistentemente elevada no setor de serviços possa ser, ao menos em parte, consequência da explosão de preços dos ativos imobiliários desde meados da década passada? Com imóveis mais caros, fica mais caro também para donos de estabelecimentos comerciais
    pagarem o aluguel, o que acaba se refletindo no aumento dos preços ao consumidor…

  17. O "tamanho" da Selic é importante, mas entendo que neste momento pesa mais uma sinalização mais forte do BC demonstrando aversão à inflação e comprometimento com a meta central. Esta sinalização poderia vir através de uma crítica transparente à política fiscal expansionista. Já vimos que o BC é rápido no gatilho para baixar a Selic, portanto elevações momentâneas poderão vir acompanhadas de quedas repentinas.

  18. Alex, me tira uma dúvida, por favor?

    À primeira vista, concordo que seja estranho observar um aumento dos gastos de seguro desemprego em meio à queda da taxa de desemprego.

    Mas, se considerarmos que a rotatividade tem sido bem elevada (e de fato tem sido), deixa de ser estranho o fenômeno.

    Portanto, não faz muito sentido o que colocou o Nakano hoje no Valor…

    O que acha?

  19. O Globo informava em 08/11: “A atividade na indústria recuou em setembro, na comparação com o mês anterior. (…) Utilização da Capacidade Instalada do setor foi de 81,9% em setembro, contra 82,1% em agosto.”.

    Por ser leigo em economia, me pergunto: como um país pode ser incapaz “de atender simultaneamente o consumo crescente de manufaturas e serviços” e ter de importar para “adequar a oferta total”, se esse mesmo país tem ociosos 18,1% da capacidade instalada na indústria?

    O gargalo principal não seria a falta de competitividade?

    O Poeta

  20. "…Portanto, não faz muito sentido o que colocou o Nakano hoje no Valor…"

    Nem sei o que o Nakano falou, mas aposto alto que não faz sentido!!!!

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