Faire la vaisselle, c’est ton métier (lavar a louça, é com você…). Por Antonio Silvio Lefèvre
Faire la vaisselle, c’est ton métier (lavar a louça, é com você…)
Por Antonio Silvio Lefèvre
De como o grande mestre Antonio Candido jocosamente me “cobrou” por um ano de cultura a domicílio… e nas ruas de Paris
Seu falecimento nesta sexta feira 12 de maio me trouxe à lembrança o ano de 1965, quando Antonio Candido, desejoso de se distanciar por um tempo da USP, onde a ditadura instalava um clima de medo, quando não de terror, aceitou um convite da Sorbonne para dar aulas em Paris.
Grande amigo que ele era de meu pai, o médico Antonio Branco Lefèvre, desde que ambos colaboravam para a revista Clima, marco fundamental da cultura brasileira dos anos 1940, e muito próximo também de minha mãe, Dorothy Fineberg, sua colega dos tempos de faculdade, Candido sabia que eu, então jovem estudante, estava exilado em Paris desde 1964, o ano do golpe. E tão logo ele chegou lá, no início de 1965, depois de me convidar para um almoço e uma sessão de cinema, me fez uma proposta irrecusável… “Aluguei um apartamento grande, para ter lugar para Gilda (sua mulher) e para as meninas (suas filhas), que chegarão no fim do ano”, me disse ele. “Mas até lá vou ficar sozinho neste apartamento enorme..Você gostaria de me fazer companhia?”.
Fazendo então meu ano preparatório para a Sorbonne, eu morava numa minúscula “chambre de bonne”, quartinho daqueles que eram destinados aos empregados domésticos no último andar dos prédios de Paris, sem elevador e sem banheiro e que, já na década de 1960, eram alugados a estudantes e profissionais “duros” , vindos de outras partes da França ou do mundo. O convite de Antonio Candido me soou como ter ganho um bilhete de loteria (pois na época não havia a Mega-Sena…).
Mas não desejando “explorar” o amigo, perguntei se eu poderia lhe ajudar a pagar mesmo que fosse uma fração do seu aluguel, repassando a ele os poucos francos que pagava pelo meu quartinho…. Com aquela sinceridade que aprendi a apreciar nele Candido me retrucou…. “Você lembra do comercial de detergente que passou no cinema em que acabamos de ir?”. Para meu espanto ele recitou de memória o slogan completo em francês: “Faire la vaisselle, c’est mon métier… Ajax amoniaqué..Du sol au plafond, comme une tornade blanche”…(Lavar a louça é comigo mesmo. Ajax amoniacado. Do chão até o teto, como um tornado branco). De olhos arregalados, fiquei aguardando o porquê desta citação “literária”… e ele explicou. “Não me incomodo nem um pouco com os afazeres domésticos… Só há uma coisa que não suporto: lavar a louça!… Se você puder cuidar disso para mim seu aluguel estará mais do que bem pago. Faire la vaisselle c’est ton métier!”
Demos boas risadas e claro que concordei, mas logo percebi que era só uma brincadeira do mestre porque raras vezes houve louça para lavar… Ele fazia suas refeições em restaurantes e eu também, no restaurante universitário. E, para minha surpresa e grande alegria, o convite foi muito mais do que para hospedagem. “Quero te mostrar algumas coisas muito interessantes que existem perto da Sorbonne que talvez você não tenha notado”, disse ele, me convidando para a primeira de uma série de caminhadas que fizemos pelo Quartier Latin e por vários lugares de Paris. Terminando quase sempre em convites para almoçar em típicos restaurantes da cidade que eu não conhecia nem meu orçamento permitiria conhecer…
Nesses passeios, como quem conta historinhas para uma criança, ele me explicava a importância histórica de cada um daqueles lugares por onde passávamos, das ruas e prédios citados nos mais variados romances da literatura francesa, tudo isso enquanto comparava com a literatura brasileira influenciada por cada autor francês… e sempre contextualizando com o que era a França e o Brasil de então.. Eu, que estava então apenas num pré-universitário, anterior à graduação e mestrado em sociologia que depois fiz na Sorbonne, tive a sensação (e depois a certeza) de ter feito ali com ele uma verdadeira pós-graduação antecipada. Pois com nenhum mestre que tive na Sorbonne, como Raymond Aron e outros, eu aprendi tanto quanto nestas caminhadas informais com o mestre Cândido.
À noite conversávamos muito sobre o que se passava no Brasil, na França e no mundo e, várias vezes, mesmo depois que Gilda chegou e eu voltei para um quartinho…
Candido me convidou à sua casa e me levou a jantares com intelectuais brasileiros ilustres que por lá estavam ou passavam. Em primeiro lugar com Lourival Gomes Machado, outro da “Geração Clima” e amigo íntimo de meu pai, que veio a Paris como diretor cultural da UNESCO. E também com o diplomata Lauro Escorel, outro amigo da família, então na Embaixada do Brasil em Roma, (cujo filho, o depois cineasta Eduardo Escorel, era meu amigo de adolescência e iria se casar com Ana Luiza, filha de Antonio Candido). E, finalmente, com amigos deles que eu jamais teria conhecido pessoalmente se não estivesse lá; Vinicius de Moraes, ainda na sua fase como diplomata… Tom Jobim, e tantos outros…
Para retribuir tanta gentileza e tantas oportunidades que Candido me proporcionou, ofereci-me para lhe apresentar brasileiros exilados que lá estavam (alguns ligados a movimentos de resistência no Brasil) e para levá-lo à casa de Violeta Arraes, irmã do governador Miguel Arraes (então exilado na Algéria) onde se reuniam estes e outros exilados ilustres de passagem, como Leonel Brizola, Luis Carlos Prestes…
Mas Candido, muito gentilmente, declinou desses convites. Claro que ele era contra a ditadura no Brasil, mas seu posicionamento político era de um socialista democrático, avesso a tudo e todos que tivessem ligação com o comunismo soviético e outros… Sua visão crítica da política era tão apurada quanto sua visão crítica da literatura, que o fez famoso. E muito do que ouvi dele nesses anos foi crucial e formador para abrir meus olhos e me permitir entender criticamente o que vi nas viagens que fiz na época aos países da “Cortina de Ferro”, inclusive à China, então idealizados pela esquerda brasileira.
De volta ao Brasil em 1970, continuei em contato com Candido, que também voltara, e a quem passei a chamar de “pai adotivo”, tão intenso e importante havia sido o convívio com ele nos anos de Paris. Sua solidariedade foi muito importante para mim quando meu pai foi interrogado pela polícia política da ditadura, em1975, saindo felizmente ileso do mesmo local onde, um mês depois, foi interrogado e assassinado meu amigo Wladimir Herzog.
Nos anos que se seguiram meu pai e eu continuamos sempre trocando ideias com Antonio Candido sobre os rumos possíveis para o Brasil. Lembro-me bem de 1980, quando Candido convidou meu pai a se juntar ao grupo de intelectuais que se propunham então a fundar um novo partido político, que viria a ser o PT. A ideia de um partido formado não por políticos convencionais, sempre sob suspeita durante a ditadura ainda vigente, mas por operários e intelectuais movidos por um ideal socialista, humanitário e principalmente ético, havia seduzido Candido.
Meu pai, contudo, escolado pela desilusão com o comunismo soviético que havia seduzido sua geração, agradeceu muito o convite e, respeitosamente, argumentou que não via então a garantia de que aquele novo partido, se chegasse ao poder, não viria a burocratizar-se e se tornar uma nova forma de ditadura como ocorrera com os comunistas sob Stalin. Além do mais, a forte participação de padres católicos “de esquerda” entre os iniciadores do partido, despertava uma grande desconfiança em meu pai, que havia estudado em colégio de padres, abominara sua pregação e havia- se tornado um ateu convicto..
Meu pai faleceu precocemente, aos 64 anos, um ano depois, em 1981. Não chegou a ver então que seus piores pressentimentos em relação ao PT se tornariam realidade…. Eu, contudo, ao tomar conhecimento do que ocorrera no Mensalão, procurei Candido para trocar ideias a respeito em 2006 e pedi a ele que, em nome de tudo o que acreditava, fizesse uma crítica pública do comportamento do partido que ajudara a fundar. Argumentei que, da mesma forma como meu pai havia feito a crítica do comunismo, quando foram denunciados os crimes de Stalin, o Mensalão era o momento de ele criticar o PT… e que eu esperava que o grande crítico da literatura fosse também o grande crítico de uma prática política que havia se desvirtuado completamente dos seus objetivos e princípios quando da fundação do partido.
Para meu espanto, Candido me disse então…. “Neste mesmo sofá em que você está sentado já estiveram há pouco o Lula e o José Dirceu. E saiba que eu passei a maior descompostura neles, muito mais do que uma crítica, por tudo o que ocorreu. Mas o fiz aqui, em particular… Porque eu sou fundador do partido e então eles são como filhos para mim… Pense bem… Se você, que eu considero como um filho, fizesse alguma coisa de muito errado, cometesse mesmo um crime, você acha que eu iria denunciar você?… Eu o chamaria aqui e passaria a descompostura em você… Mas nunca o faria publicamente porque não se faz isso com um filho”.
Tentei argumentar dizendo que me sentia muito orgulhoso de ele me considerar como filho, mesmo que adotivo, mas que nossa relação sempre foi pessoal, de amizade e proximidade familiar… enquanto que a relação dele com esses personagens era apenas política… E, portanto sujeita à crítica política. Mas ele não cedeu.. e eu, evidentemente, respeitei e me calei sobre o que havia me dito sobre o PT, em caráter totalmente pessoal.
Dez anos depois, em 2015, quando veio à tona o Petrolão, dirigi-me novamente a ele, desta vez por carta, relembrando nossa conversa de 2005 e pedindo que, à luz dos novos fatos, ainda muito mais graves, ele considerasse agora a necessidade da crítica pública ao PT que eu lhe havia sugerido anos antes.
Mas desta vez sua resposta foi o silêncio, que eu, respeitosamente, entendi, assumindo que mantinha sua postura de crítica apenas “dentro de casa”.
Agora que Antonio Candido se foi, sinto-me à vontade para revelar estes episódios, pois acredito que eles só engrandecem a figura e a memória dele.
Seria um grande erro e um desrespeito à sua memória e à sua contribuição ao país, considerá-lo como apenas mais um “intelectual petista”, de olhos atados, como alguns que temos visto repetindo slogans pré-fabricados e mentirosos, nas universidades, nos jornais e nas ruas.
Não, Antonio Candido era muito maior do que o PT e espero que este partido, para tentar “limpar a sua barra”, não tente se apropriar da sua memória, como se ele fosse apenas um “companheiro” ilustre….
Não, Antonio Candido pertence ao Brasil, à cultura brasileira. E se o PT não o mereceu enquanto vivo não o merece também na posteridade. Amém.
Foto Abertura: A redação da revista Clima, dos anos 1940. À frente, Alfredo Mesquita (à esquerda), Antonio Candido (ao centro) e Lourival Gomes Machado (à direita); Ao fundo, Antonio Branco Lefèvre, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Sales Gomes e Roberto Pinto de Souza
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ANTONIO SILVIO LEFÈVRE – é sociólogo (Université de Paris), editor e livreiro. Interpretou Pedrinho na 1ª adaptação do “Sítio do Pica-pau Amarelo” para a TV, em 1954. Veja no Museu da TV.
Estou curioso sobre as suas publicações
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