Chora, Nelson Rodrigues. Por Josué Machado
CHORA, NELSON RODRIGUES
Por Josué Machado
Atribui-se ao dramaturgo pernambucano um pecado que ele dificilmente terá cometido
Nestes conturbados tempos pós-cabralinos temerianos à beira do caos, um jornal citou frases históricas sobre o estádio do Maracanã e atribuiu esta ao magnífico cínico Nelson Rodrigues (1912-1980):
“Daqui há 200 anos, a cidade dirá, mordida de nostalgia: ‘Aquele Fla-Flu!’, Ah, quem não esteve ontem no estádio Mário filho não viveu!”
Sim, “daqui HÁ 200 anos”, publicou o jornal, para vergonha de todos os escribas, vivos e mortos.
Verdade que todos estamos sujeitos a derrapar nas curvas da distração, mas Nelson Falcão Rodrigues, cronista esportivo amante de futebol, romancista e dramaturgo, sobretudo dramaturgo, talentoso explorador dos instintos humanos – de preferência os mais baixos, às vezes rasteiros –, dono de texto coloquial exemplar, dificilmente terá redigido em sua velha máquina de escrever Remington a frase com a forma verbal “há” no lugar da preposição “a” porque era ótimo escriba.
E também dificilmente uma coletânea de frases sairia em livro com erro tão elementar porque os textos de livros em geral são revisados mais de uma vez. A menos que a frase tenha sido colhida na internet, esse vasto território sem lei nem ordem, com espaço pra tudo.
“Daqui há 200 anos”?
Coisinha feia!
Convém lembrar que a forma verbal HÁ é usada na maioria das vezes para se referir a tempo passado e equivale a FAZ:
“HÁ mais de quinze anos o PT chegou ao poder federal.”
“O PSDB governa São Paulo HÁ mais de 20 anos.”
E a preposição “A” é utilizada, entre outras coisas, em construções que indicam tempo futuro e distância:
“Alguém (que não o Boçalnato) será eleito presidente daqui A um ano.”
“Daqui A Santos leva-se mais de uma hora de carro.”
“Daqui A duzentos anos vamos todos nos rir destes tempos.”
Considerando esses princípios mais ou menos elementares, o que terá então ocorrido para que o jornal publicasse o escorregão rudimentar com tanta evidência? Provável distração do redator encarregado de coletar as frases de efeito. E distração do editor responsável, se é que houve um.
Mas não se afasta a hipótese de sabotagem do computador.
Sabedeus.
Algumas de suas frases:
– Só o inimigo não trai nunca.
– Invejo a burrice, porque é eterna.
– Deus está nas coincidências.
– Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.
– O dinheiro compra até amor verdadeiro.
– A liberdade é mais importante do que o pão.
– O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência.
– Amar é dar razão a quem não tem.
– Toda unanimidade é burra.
– Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.
E esta, muito apropriada para os tempos atuais:
– Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem.
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Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade