O mosquito elétrico e a eternidade. Por Josué Machado

O MOSQUITO ELÉTRICO E A ETERNIDADE

Por Josué Machado

As “otoridades” teimam em usar o bem público para promover o próprio bem. Eternamente.

Eis um trecho do poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira (1896-1968):

“Rua da União…
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
…onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora…
…onde se ia pescar escondido”

A propósito de nomes, o alvoroçado prefeito João Doria, conhecido como “Mosquito Elétrico” por sua inquietação buliçosa, disse estar disposto a mudar o nome do bairro de Bom Retiro para “Bom Retiro Little Seul”.

Assim mesmo, em inglês.

Ele fez o anúncio em visita a Seul na Semana Santa, preparando-se para candidatar-se a governador. Primeiro governador; depois, sabedeus…

Mas por que mudar o nome do bairro tradicional, perguntarão pessoas distraídas.

Para homenagear os muitos sul-coreanos lá radicados e reativar a região, explicou.

O nome de apelo turístico, ele acha, seria um eco animado do que ocorre em outros países com coisas como “Little China”.

Nessa linha utilíssima de reconstrução do país desmoronado, convém lembrar que houve na região sul de São Paulo uma rua chamada “Botafogo”. Apenas Botafogo.

Então algum admirável vereador da absolutamente indispensável Câmara da cidade resolveu homenagear alguém e sugeriu a mudança para “Rua Guilherme Asbahr Neto”.

Nada contra o Asbahr, mas donde surgiu a rutilante ideia do edil (belo nome) de mudar o nome limpo e sonoro de “Botafogo” para algo como Guilherme das Couves, que só interessou ao esplêndido político bajulador e à família do homenageado, sempre referenciado com milhares, milhões de pragas inomináveis? Inomináveis como os vereadores e suas inúteis vereanças desinteressadas.

Entre as centenas de nomes inexpressivos para a população, expressivos apenas do espírito de bajulação e interesse que caracteriza a câmara de vereadores (assim, com minúsculas), há o do túnel entre as avenidas São Gabriel e Santo Amaro: “Túnel Takeharu Akagawa”.

Pois sim, o sr. Akagawa foi um empresário japonês dedicado ao turismo em São Paulo.

E daí?

Por que fazer uma coisa como essa com os pobres munícipes, como dizem eles naquela prestimosa câmara?

Quem é que vai se lembrar do nome do sr. Akagawa, senão seus akagawanos descendentes?

Impossível também esquecer de homenagens como o “Elevado Costa e Silva”, agora “Elevado João Goulart”, e outras 39 ruas de São Paulo com nomes de torturadores nos tempos da gloriosa revolução redentora, como Milton Tavares e Sérgio Fleury.

(Nossos representantes nas câmaras e assembleias, sem contar o senado, são assim: inclinam-se na direção em que sopram os ventos da época.)

E quem se esquecerá da mamãe do ex-prefeito e agora deputado Paulo Maluf? Ela foi homenageada na inauguração de uma das obras bem gerenciada$ e bem financiada$ pelo filhote em 1994: “Complexo Viário Maria Maluf”.

Foram coisas como essas que Manuel Bandeira lamentou no poema, com sua doçura de quase sempre.

Perto das linhas finais :

Recife…

Rua da União…

A casa de meu avô…

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade”.

__________________________

JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter