Mensagem de Borges. Por Jacob Klintowitz
Mensagem de Borges
Por Jacob Klintowitz
…”Nós também, não somos os mesmos, não somos menos fluidos do que o rio. Mas neste universo intermitente onde sou, sou também um livro e sou este ser fluídico e em movimento que pode dizer, sem a sensação de ser uma fraude, eu sou Borges e sou feliz.”…
Publicado no Suplemento Literário de BH, edição de nº 1.368
A minha pergunta foi depositada na brisa que soprou ontem à noite. A minha indagação no leito dos ventos, depositada ao acaso no incógnito. Talvez eu tenha enunciado a minha pergunta quando olhava a escuridão da noite e ninguém a tenha escutado e o universo tenha sido indiferente à minha curiosidade. De qualquer maneira, tanto ele, quanto eu, acreditamos na lógica do acaso, se se pode dizer desta maneira.
Nós dois sempre admiramos a beleza geométrica da Cabala, a correspondência entre a colocação da letra, do ornamento e da palavra e o seu significado oculto. Deus, mesmo para agnósticos como nós, não falava ao acaso e não desperdiçava palavras. Impossível para os que amam as palavras não crer que elas iniciaram o mundo e que ao seu comando, certo dia, o universo desaparecerá. E os que conhecem os segredos da vírgula, do ponto e vírgula e do ponto, não terão dificuldades de imaginar o tempo cíclico e o roteiro deste mundo que um dia se fundirá com o nada.
Tenho impressa em mim a resposta e penso que seja dele. A não ser isto deveria acreditar que entre ele e eu não há diferença, ou que as nossas fronteiras são indefinidas ou que contenho em mim uma parte dele ou, então… Tenho impressa em meu espírito esta mensagem e ela me parece tão dele; a precisão da resposta e a impossibilidade da certeza nos confina ao universo do enunciado e do indeterminado. Algo pode ser mais Borges do que isto?
… Para um cego que não pode contemplar o horizonte o mundo é a extensão do gesto. O meu braço determina o limite do que me foi concedido. Neste aqui onde me encontro tudo me parece dotado de um ritmo mais acentuado. Ao pensar o meu gesto ele se faz.
“Estimado amigo,”
“Você me pergunta onde estou, mas neste exato momento eu me concentro em definir quem eu sou. Como sempre estou envolto em tons de amarelos e ocres. Esta é a cor final que me sobrou neste mundo dos cegos. Ao contrário do que podem pensar um cego não encontra diante de si o permanente preto. Eu, ao menos, depois de perder a cada vez uma parte do arco-íris restou-me estes matizes cambiantes, o amarelo e o ocre e, para sempre, amarelo e ocre. Não me parece dramático, como alguns podem crer. Eu sempre soube que este era o meu destino e caminhei para ele inexoravelmente. E, agora, esteja eu onde estiver, continuo envolto nestes matizes que já tomo como meus. Há uma diferença que é perceptível. É mais imediata a imagem que invoco. Não leva mais tempo do que o simples desejo e já me ocorre a imponência simples dos parágrafos de Chesterton. Também Lugones está tão perto. E Emerson é acessível e é um jubilo permanente o seu claro pensamento. Walt Whitman, ao contrário, só me chega em partes. Talvez ele seja oceânico demais. Esta memória que me parece tão renovada é muito agradável. Pois, caro amigo, o que será a vida senão a memória e os sonhos? E aqui, seja o que for este aqui, tudo são memórias e sonhos e não poderia desejar mais do que isto. E, mesmo modestamente, os meus próprios versos me chegam em cascatas levemente sonoras. Imagino que brilhem e que os sons e os brilhos sejam harmônicos entre si. Escuto os meus poemas e alguns não são de todo maus.”
“Para um cego que não pode contemplar o horizonte o mundo é a extensão do gesto. O meu braço determina o limite do que me foi concedido. Neste aqui onde me encontro tudo me parece dotado de um ritmo mais acentuado. Ao pensar o meu gesto ele se faz. O novelo ocre que me cobre se expande a cada passo e, no entanto, estou sempre na minha nuvem de matizes amarelos. Nunca ela se esgarça, nunca me abandona, e ela, esta sensação de casulo que me causa, já é o que sou. A biblioteca para mim é a própria concepção do paraíso, já o disse demasiado número de vezes. Em Buenos Aires, certa vez, estive no paraíso com milhares de livros ao meu redor. Mas devido à cegueira não tinha mais o acesso a eles. Uma bela ironia do Criador, pois me deu os livros e a escuridão ao mesmo tempo. Tenho a sensação olfativa de estar entre livros, mas continuo sem os ver e, entretanto, é como se todos estivessem em mim, pois ao pensá-los os seus parágrafos desfilam na minha mente. De modo que, caro amigo, estou aqui no meu casulo, nestes envolventes matizes de amarelo, e com o que parece ser uma infinita biblioteca que não posso ver, mas que se revela para mim em imagens interiores. Há pouco estive com Ulisses, mas não poderia te dizer que este há pouco foi hoje ou ontem ou anteontem. Na verdade, o calendário desapareceu da minha alma. Não tenho urgência e posso saborear o que Homero nos disse e pensar que ele gostaria, se um dia estivermos juntos, que eu lhe diga, como quem não quer dizer nada, como uma frase que nos sai com a respiração, sem esforço, “…os dedos róseos da aurora…”.”
“Às vezes eu me desdigo – mas o que importa o desdizer-me? – mas não é o que ocorre desta vez. Lembra-se que um dia escrevi que o livro é uma das possibilidades de felicidade de que dispomos, nós, os homens? Você me pergunta onde estou e só sei dizer-lhe apenas o que sou neste momento ou o que imagino que sou neste momento. Mas devo lhe acrescentar que habito entre livros e, mais até, os livros habitam em mim. E a minha sensação de felicidade – é a primeira vez que posso utilizar esta palavra sem a percepção de que estou sendo indevido – é tal que penso que habito nos livros. Nunca nos banhamos no mesmo rio, como disse Heráclito, e eu também repeti em demasia. Nós também, não somos os mesmos, não somos menos fluidos do que o rio. Mas neste universo intermitente onde sou, sou também um livro e sou este ser fluídico e em movimento que pode dizer, sem a sensação de ser uma fraude, eu sou Borges e sou feliz.”
_________
Jacob Klintowitz – crítico de arte, editor de arte. É autor de 141 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, monografias de artistas, ficção e livros de artista. Curador do Espaço Cultural Citi. Conselheiro do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi. Conselheiro do Museu Judaico de São Paulo. Vice-presidente do Instituto Anima De Sophia. Ganhou duas vezes o “Prêmio Gonzaga Duque” da Associação Brasileira de Críticos de Arte, pela atuação crítica. Homenageado pela ABCA por sua intensa ação cultural.