Toda a Terra e o Céu também. Por Charles Mady
Toda a Terra e o Céu também
Charles Mady*
…O curioso é que as três religiões nascidas de Abrahão propõem a caridade, a compaixão e a justiça social como alicerces da devoção. Um local, pois, só seria sagrado se houvesse tolerância e justiça para todos…
Publicado originalmente no Jornal da USP- http://jornal.usp.br/artigos/o-desafio-do-pluralismo-religioso/
Mitos e entes míticos, de dificílima ou impossível comprovação histórica, sempre os houve; em boa parte da História moveram sociedades para o bem ou para o mal, triunfando sobre a espiritualidade mais racional Mitos geram devoção a lugares santificados, e adorá-los é demonstração de fé. Em nossos tempos, chegou-se a crer que a razão havia superado os mitos. Foi um erro de análise: hoje, os mitos triunfam sobre a razão.
Jerusalém é símbolo sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos. E a discussão sobre o controle deste símbolo tem mais importância que temas essenciais para o futuro da Terra. Não pode a cidade ser sagrada para todos, um orando ao lado do outro? A ideia parece distante dos religiosos radicais. O objetivo, ao dominá-la, parece ser o de apequenar as demais religiões.
…Tanto mal se fez, e se faz, em nome de Deus! Nosso Deus é um só, e Divino; mas parece haver mais interesse dos fundamentalistas no culto não ao Divino, mas às religiões, criações humanas. O objetivo não é aprender com Deus, mas sobrepor-se às outras vertentes tão próximas e tão distantes.
O curioso é que as três religiões nascidas de Abrahão propõem a caridade, a compaixão e a justiça social como alicerces da devoção. Um local, pois, só seria sagrado se houvesse tolerância e justiça para todos.
Há diferenças de dogmas entre as religiões; e muito mais coincidências. Abrahão, anterior às três religiões, pregou a devoção ao Deus único, sem dogmas,obrigações ou leis. Portanto, as três vertentes abrâmicas têm ótimas condições para buscar convergências, em vez de exacerbar divergências.
Tanto mal se fez, e se faz, em nome de Deus! Nosso Deus é um só, e Divino; mas parece haver mais interesse dos fundamentalistas no culto não ao Divino, mas às religiões, criações humanas. O objetivo não é aprender com Deus, mas sobrepor-se às outras vertentes tão próximas e tão distantes.
O profeta Ezequiel via o sagrado como um mistério grandioso demais para a Humanidade. “Amai vosso semelhante como a ti mesmo”, “Se um estrangeiro vive convosco, em vossa terra, não o molesteis”. Que adeptos fundamentalistas de qualquer religião respeitam isso? O profeta Jeremias, por esse motivo, dizia que a Lei não deveria ser inscrita na pedra mas nos corações. Buda foi mais longe: não é preciso estar numa área sagrada para atingir a realidade suprema. Precisava-se de compaixão, não de símbolos. O rabino Hillel dizia: “O que for detestável para ti, não o faças a teu próximo. Toda a Torah consiste nisso. O resto é comentário”.
Uma ponte entre as crenças monoteísticas está no Levítico: “Não te vingarás, não guardarás rancor”. São preceitos de espírito, não de letras, para todos nós. De nada vale obedecer às letras se não se gera justiça.
… Hoje, separar religião e política tornou-se essencial para as sociedades, entendendo-se que radicalismos e fundamentalismos, políticos ou religiosos, são nocivos.
A Cidade de Deus não deveria estar aberta a todos, conforme sugeriu Zacarias? Javé proclamou: “Minha casa será uma casa de oração para todos os povos”. Excluí-los contradiz uma tradição das religiões. Respeitamos uma sinagoga, uma igreja, uma mesquita, ou qualquer outro templo – construções humanas – , mais que seres humanos que estejam fora delas? O respeito pelo diferente deveria indicar a integridade de uma crença.
Na era axial, definida pelo filósofo Karl Jaspers, alguns dos maiores doutrinadores da humanidade, cada qual a seu modo, estabeleceram princípios éticos válidos para sempre. Prepararam o caminho para o culto universal ao Deus único e o entendimento entre as variadas crenças. Infelizmente, suas lições não estão sendo bem aproveitadas.
Hoje, separar religião e política tornou-se essencial para as sociedades, entendendo-se que radicalismos e fundamentalismos, políticos ou religiosos, são nocivos. Mas essa associação persiste em todas as crenças. Partidos teocráticos determinam resultados de eleições pretensamente democráticas. Seus protagonistas usam mais os argumentos de Josué que os de Isaías. Os deuses do ódio, das guerras, da vingança das Escrituras predominam sobre o Deus único da paz, da compaixão, da tolerância.
O Ocidente empreendeu há pouco uma nova cruzada, humilhando e destruindo e países inteiros. As reações são violentas, cruéis, também em nome de seus deuses; e surge no Ocidente um novo tipo de racismo, a islamofobia. O “mal” é pago com o “mal”. Outra consequência devastadora é a migração de refugiados, tão indesejados como o foram os judeus na Europa. Se não tivessem ocorrido as intervenções militares, esses grupos islâmicos fanáticos existiriam? Ninguém nasce fundamentalista ou terrorista.
A tragédia no antigo Congo Belga, com milhões de mortos e mutilados, efetuada por um rei cristão, de uma sociedade tida como civilizada, a Bélgica, é de fazer inveja aos tiranos europeus na Segunda Guerra Mundial. Aqueles que ontem sofreram, hoje fazem sofrer. É só acompanhar uma região chamada de Palestina pela maioria dos membros da ONU. Será que, se hoje tivéssemos um Estado palestino, muita violência teria sido evitada? Ambos os lados têm, pela lei internacional, direito à autonomia. Mas as ambições territoriais e a religião conduzem à guerra. Novamente as religiões, politicamente bem manipuladas, não o permitem.
Até quando os fundamentalistas, de crenças variadas, determinarão nosso futuro? A maioria da população não os quer, mas fica impassível, conivente com esses grupos cujas únicas diferenças são a roupagem, suas línguas e seus ritos. A verdadeira fé não exige nada disso.
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*Charles Mady é professor associado da Faculdade de Medicina da USP e diretor de Unidade do InCor