Práticas que nos matam de vergonha, e viciam o cidadão. Por Aylê-Salassié F. Quintão*
Práticas que nos matam de vergonha, e viciam o cidadão.
Aylê-Salassié F. Quintão*
…Embora a maioria seja formada em escolas de medicina públicas – cursos pagos pelos contribuintes –, os médicos brasileiros resistem ir para o interior…
Em menos de 24 horas, 123 mil visualizações, 4.879 compartilhamentos, 1.100 comentários. Li a matéria da Folha: “Prefeito telefona para médico ausente em postinho e vídeo viraliza”. Recomendo-a sobretudo aos médicos , aqueles que quando ingressam na profissão fazem o famoso juramento de Hipócrates: “A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação”(Genebra, 1948).
Em visita a um Unidade de Saúde no município de Caxias do Sul, o jovem prefeito encontrou uma fila de pacientes aguardando atendimento. O médico não comparecera ao trabalho, alegando estar em greve. Não era só ele: 342 médicos paralisaram suas atividades em protesto contra uma portaria do prefeito que tornava obrigatório, a partir de 10 de março, bater o ponto eletrônico de entrada e de saída.
O sindicato dos médicos promoveu a greve, à qual aderiram 85% dos profissionais. Alegou que um acordo interno, na gestão passada, estabelecera que o médico iniciaria o atendimento às 8h, receberia 18 pacientes, e depois se retiraria. Como algumas consultas demoravam 10 minutos ou menos, constatou-se que os médicos trabalhavam duas horas por dia. Na gestão anterior eles haviam realizado uma greve de oito meses.
Embora a maioria seja formada em escolas de medicina públicas – cursos pagos pelos contribuintes –, os médicos brasileiros resistem ir para o interior. Sofisticam-se nas especialidades, montam consultórios particulares nos grandes centros, paralelamente aos empregos no Estado, fazem greve nos hospitais públicos, e atendem nos consultórios e hospitais privados.
Cheia de artifícios, a categoria está envolvida em Brasília num imbroglio judicial, com acusações de fornecimento de atestados, de recomendações para cesarianas e cirurgias desnecessárias. Nesse último domingo (05/03), o Sindicato dos Médicos reagiu e publicou uma nota nos jornais acusando o governo de desinteresse pela saúde, ao manter os hospitais desabastecidos. Em que pese ser impossível contestar, o sindicato politizou, entretanto, o comunicado, denunciando o governo por pretender acabar com as gratificações.
Não estão sozinhos. Essa preocupação com ganhos cada vez maiores envolve outras categorias. Os bancários numa escala de greves chegaram a receber 13º, 14º salários e até participações nos resultados, sem que isso refletisse na melhoria do atendimento público. São privilégios que se institucionalizam.
Venho de uma experiência curiosa. Dias antes de um convite para assessorar um deputado na Câmara Legislativa do DF, no início do novo milênio, fui testemunha de uma fila com centenas de aposentados, já no seu terceiro dia, ao redor do estádio do Maracanã, no Rio, para receber o salário do INSS na agência de um banco nas redondezas. Era inverno, e chovia. Uma senhora idosa não suportou e terminou morrendo na fila. No primeiro encontro com o deputado trocamos ideias sobre demandas e necessidades da população, e como o Legislativo poderia ajudar a minimizar as angústias e promover ajustes sociais nas políticas públicas.
… No Distrito Federal, constatou-se que os salários dos dirigentes da empresa que quer cortar a água e subir as tarifas chegam a R$ 100 mil. Lei salarial, que nada!
“Vamos fazer um projeto para proibir as filas no DF”, nos hospitais, nos postos de saúde, nos bancos, nos Detrans. O deputado se animou. Preparamos o projeto, e ele foi aprovado. O problema era a sua implantação. Houve uma insurgência geral, deixando o governador em pânico, no momento de sancionar a Lei que no DF teve o número 2.547/2000.
A reação contrária começou pelos hospitais, depois vieram a Federação dos Bancos , a Receita Federal, e logo o Banco Central contornou, criando um programa de “cliente (bom) prioritário”. Implantada no DF, a ideia se espalhou pelo País por meio das assembleias estaduais, chegando ao Supremo. Submetidos ao crivo da antipatia pública, despertada pela Lei, os bancos aumentaram o número de “caixas”, introduziram senhas, distinguiram o atendimento entre idosos e correntistas comuns, instalaram cadeiras para a espera, introduziram cafezinho e bebedouros para quem esperava ser atendido e até salas VIP.
No Distrito Federal, constatou-se que os salários dos dirigentes da empresa que quer cortar a água e subir as tarifas chegam a R$ 100 mil. Lei salarial, que nada! Os delegados de polícia brigam para ter um salário igual aos dos juízes e estes, por meio de suas “associações” tentam estender para si os privilégios e vantagens auferidos pela cúpula do Judiciário, cujos servidores, fizeram, no auge da crise orçamentária, uma greve por um aumento de 60 %.
…Lênin reclamava que suas ordens não chegavam em baixo…
O associativismo, com perfil sindical, estendeu-se para dentro do serviço público, tornando-se permissivo. Por aqui, a maioria das greves – proibidas em lei no serviço público – coloca as gratificações, planos de saúde, redução das horas de trabalho e vantagens na frente de tudo. Em se tratando dos médicos e dos policiais é uma pena, porque são profissionais que, enquanto tais, a população aprendeu a respeitar. Aos poucos, perdem o reconhecimento público de suas virtudes.
Tudo isso parece uma grande brincadeira: um “Pacotão”. A máquina do Estado, sobretudo o Judiciário e o Congresso está toda viciada. É kafkanianismo líquido. Devora a si mesmo, induz a respostas violentas, e desaparece. Em Brasília, o expediente semanal no serviço público vai até sexta-feira às 18hs. Mas, a partir das 14hs o trânsito fica insuportável. O relógio de ponto foi abolido no setor público. Os executivos terceirizados que chegam por aqui imprimem praticamente a própria personalidade e métodos de gestão nas políticas públicas, como o “acordo” com os médicos em Caxias do Sul.
Lênin reclamava que suas ordens não chegavam em baixo. O servidor responsável pela execução das políticas públicas, salário em dia, não esquenta a cabeça com os milhões de desempregados, com as limitações orçamentárias do Estado, nem com o mau atendimento ao público. O salário está em dia.
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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural
Concordo em gênero e número, Quintão. Só não dá para endossar “mal atendimento”. Atendimento (substantivo) é bom ou mau (adjetivos). O paciente pode ser “bem” atendido ou “mal ” atendido (verbo modificado por advérbios). Desculpe a ousadia.