Sou politicamente incorreto. Por Ives Gandra Martins
Sou politicamente incorreto
Por Ives Gandra Martins
Sendo um advogado e professor que nunca quis ser senão advogado e professor, sinto-me, aos 82 anos, um cidadão politicamente incorreto, pois defendo a democracia do voto, e não das invasões; da independência e autonomia dos Poderes, e não do desrespeito ao limite de competências; da moral familiar e da cidadania, e não da imposição de desejos das minorias sobre os valores da maioria…
*Originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo 28 de fevereiro/2017.
Aos 82 anos, confesso sentir-me politicamente incorreto, pois não consigo adaptar-me a uma realidade em que o descumprimento da Constituição e da lei pode ser praticado com aplausos de parte da mídia e de autoridades respeitadas no país.
Como operador do Direito há quase 60 anos, não me habituo ao atual protagonismo do Supremo Tribunal Federal, cujos ministros, reconhecidamente eminentes juristas, em vez de “guardiões da Constituição” (artigo 102), não poucas vezes a alteram, criando novas normas. A invasão de competências legislativas é proibida pelo artigo 103, § 2.º, ao prever que nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, declarada a omissão do Congresso, cabe ao Supremo apenas solicitar-lhe que produza a norma. Se não pode legislar nessas ações, não o pode também em habeas corpus, mandados de injunção ou quaisquer outros veículos processuais não vocacionados a interferência na função legislativa.
Ora, o STF legislou no caso de prisões de parlamentares por crimes no exercício do mandato, sem autorização da Câmara (artigo 53, § 3.º, da Constituição); no caso da interrupção da gravidez de anencéfalos, criando hipótese de impunidade para aborto eugênico não constante do artigo 128 do Código Penal. Legislou ao permitir o homicídio uterino até três meses de gestação sem nenhuma justificativa; ao permitir que a união entre pares do mesmo sexo, o que é legítimo, tivesse o mesmo status que o casamento, instituto que a Lei Suprema apenas admite para a união entre homem e mulher (artigo 226, § 3.º). Legislou quando permitiu que candidato derrotado assumisse governo de Estado, sem novas eleições diretas ou indiretas (artigo 81); desconsiderou a presunção de inocência, o devido processo legal e o instituto da coisa julgada para permitir a prisão em segunda instância (artigo 5.º, inciso LVII).
Por outro lado, o Ministério Público, em que atuam bons juristas, incluídos os do Paraná, em certas atuações cinematográficas tem procurado desconstituir o instituto universal in dubio pro reo, como se uma investigação bem fundamentada pudesse justificar a pena, mesmo que haja dúvidas. Segundo essa nova interpretação, a dúvida, beneficiaria a acusação, não o réu.
O Congresso Nacional, acuado pelas denúncias da “lava jato”, não tem coragem de se opor a essa invasão, razão pela qual não tem desobedecido às ordens emanadas daquele Poder, apesar de o permitir o artigo 49 inciso XI da Lei Suprema. Basta lembrar a determinação para anular a votação de projeto de iniciativa popular elaborada pelo Ministério Público contra a corrupção, nos termos em que foi por ele modificado. Criou o STF a obrigação de um projeto de iniciativa popular, assinado por 2 milhões de brasileiros, ser compulsoriamente “homologado” pelo Congresso eleito por 140 milhões de brasileiros, sem alterações!
Em artigo neste jornal, A verdade sobre as ‘10 Medidas’ (contra a corrupção), Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Hamilton Dias de Souza, Renato de Mello Jorge Silveira e eu mostramos como muitas das sugestões lá contidas eliminariam o mais sagrado direito de uma democracia, que é o direito de defesa, inexistente nas ditaduras.
Por outro lado, o Ministério Público, em que atuam bons juristas, incluídos os do Paraná, em certas atuações cinematográficas tem procurado desconstituir o instituto universal in dubio pro reo, como se uma investigação bem fundamentada pudesse justificar a pena, mesmo que haja dúvidas. Segundo essa nova interpretação, a dúvida, beneficiaria a acusação, não o réu.
Tenho dito que o Brasil muito deve a Sergio Moro, à Polícia Federal e ao Ministério Público por desventrarem a corrupção e darem novo alento ao país, mas tenho também feito críticas à interpretação dos delitos cometidos — para mim, muitos se assemelham à concussão imposta pelos governos dos últimos 13 anos —, assim como às prisões preventivas prolongadas (artigo 5.º, inciso III, da Lei Maior).
Por outro lado, o Ministério Público não deve presidir os inquéritos policiais, função que a Constituição, no artigo 144, § 4º, outorga exclusivamente a delegados de polícia.
…Na esperança de que um dia o Brasil seja uma democracia real em que a maioria do povo tenha sua voz ouvida em seus valores, sem ser silenciada pelos preconceitos ideológicos da minoria, reitero ser um velho advogado e professor “politicamente incorreto”…