A capacidade de suportar a incerteza é a maior virtude para juntos não naufragarmos. Por Aylê-Salassié F. Quintão*
A capacidade de suportar a incerteza é a maior virtude para juntos não naufragarmos.
Aylê-Salassié F. Quintão*
… Resta a participação política. Seria uma alternativa para a angústia da população. Mas, é projetada em grandes mobilizações, embora tenha caráter instintual, de sobrevivência…
Quando termina o dia, o sujeito transformado em consumidor está irritadamente exausto e aborrecido: O caixa fechou. Não se aceita cheque. A internet caiu. Pagamento só em dinheiro. Não temos convênio. Está vencido. Só com boleto novo. Atendimento encerrado. Consulta médica daqui a três meses. O assassino pode ser solto por ser réu primário. A polícia está impedida de deixar o quartel, porque três mulheres fecharam a saída. Enquanto isso 190 pessoas são assassinadas à luz do dia.
Essas pequenas inflexões no cotidiano ritualizam a seu modo o descontrole da vida dos cidadãos e até do País. É o exercício pleno da burocracia à serviço do capital, ao qual governos sem rumo embarcam na esperança de manter a coesão social. A liberdade individual é cerceada por uma liturgia que tem mais a ver com os controles do “Grande Irmão”, do livro “1984”, de George Orwell.
Aparentemente, as inovações tecnológicas e os processos modernizantes agilizam o desenvolvimento, alavancando o crescimento. Este discurso gera ilusões e crenças , e é logo incorporado aos sistemas produtivos . Vulgarizado, alcança o cidadão, acelera sua vida, dando-lhe uma maior autonomia. É o progresso .
Desde o século 19 a especialização vem ganhando força. O taylorismo introduziu a racionalização das atividades industriais, e o “fordismo” a linha de produção em etapas de trabalho especializados superpostos. Juntos combinam a demanda por tecnologias com o conhecimento gerado em laboratórios.
… A incerteza e a insegurança é o cenário no qual operam os políticos oferecendo alívio e alimentando sonhos. Mas eles perdem a cada dia seguidores, porque sua imaginação esgota-se rapidamente na realidade social…
Legitimando o modelo de produção em larga escala, no campo da estética e da ideologia, iria surgir o futurismo rompendo a linearidade e as formas convencionais, e promovendo o caos. Era a “arte verbal revolucionária”. Anárquicos e incendiários, de seu rastro emergiu uma aliança entre o poeta e o pintor, entre o poeta e o designer, entre este e a propaganda, que iriam inspirar lá na frente a poesia concreta. Poucos assumem isso.
Tudo desembarcou muito tarde por aqui. Num ritmo quase sempre irregular, Mauá, Monteiro Lobato e alguns italianos mais afoitos ajudaram a empurrar o País agrícola na direção industrial. Foi lento o ritmo, mas o Brasil chegou a comemorar – mais recente – a qualificação de “emergente”, e até de “não alinhado”. Ganhara autonomia, e praticamente não precisava se filiar a ninguém . Na primeira “marolinha” na economia lá se foi o status, e o propagado “ futuro” tornou-se uma angústia.
Edgard Morin reconhece que o mundo vive uma crise profunda de representação, não poupando as democracias, os partidos, nem as organizações corporativas. A incerteza e a insegurança é o cenário no qual operam os políticos oferecendo alívio e alimentando sonhos. Mas eles perdem a cada dia seguidores, porque sua imaginação esgota-se rapidamente na realidade social. A academia, de onde se esperava sairiam soluções, vem também sofrendo um enorme desgaste, por distanciar-se gradualmente dos fenômenos concretos e do sujeito, na sua humanidade.
De tal forma que a população, desdenhando da politicagem e dos futurólogos, transfere, aos poucos, sua admiração política para empresários – e até militares – que oferecem gestões virtuosas. Geram incógnitas do tipo: “decifre-me ou te devoro”.
Resta a participação política. Seria uma alternativa para a angústia da população. Mas, é projetada em grandes mobilizações, embora tenha caráter instintual, de sobrevivência. Sobram duas soluções imaginárias: a adesão a alguns dos partidos políticos ou corporações institucionalizadas, hoje com a Lava Jato às suas portas; ou a vinculação, mesmo clandestina, a organizações comunistas ou a redes sociais e digitais não explícitas, por meio de um ativismo anônimo.
Essa é a civilização da pós-modernidade, na qual a barbárie se faz representar pela crueldade, a dominação, a subserviência, a enganação e a tortura; e pela “barbárie gelada”, em que o pensamento econômico, fundado em estatísticas, projeções matemáticas e algorítimos, mascara a realidade humana e deturpa as relações do sujeito com sua origem. O ser humano se transforma em simples objetos. “São 14% de desempregados”. “Não, são 20 milhões de cidadãos, envolvendo aproximadamente 40 milhões de famílias sobrevivendo com extrema dificuldade”. A linguagem dos cálculos institui uma realidade ilusória e introduz um falso conhecimento.
Abandonam-se assim as relações dos homens entre si e com a natureza, e passa-se a cultuar o poder e o dinheiro, cuja reprodutibilidade se amparam, entre outros, no domínio burocrático do mundo, ritualizado em ritmo e limites quase insuportáveis. É o reino da “barbárie gelada”. Diz Morin que se tivéssemos de repensar a política, iríamos descobrir que estamos numa espécie de pré-história.
As correntes negativas – ideológicas, oportunistas e patológicas – são mais fortes que as forças positivas que tentam levantar este mundo, todas muito dispersas. Cada um por si? O indivíduo precisa abrir a caixa do cérebro à busca de maior clareza sobre a finalidade da experiência humana. Para Morin, neste momento, “a capacidade do cidadão de suportar a incerteza é a maior virtude para não naufragar”, e levar os outros consigo.
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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural