No Caldeirão da Santa Cruz. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

No Caldeirão da Santa Cruz

Aylê-Salassié F. Quintão*

Entre a riqueza e a pobreza extrema, as carências apenas variam. Alguns resistem no sertão, disputando os poucos espaços de plantio com os animais  sobreviventes. O capim é raro e seco. A caatinga está lá, ressequidamente “braba”, uma muralha de espinheiros…

                  “Entrego pra Deus a solução dos problemas”. Foi assim que o prefeito de um município do sertão do Ceará inaugurou sua gestão de quatro anos. A chuva não aparece há cinco.  Incorporando o espírito de beato, um ex-governador se aproveitava do drama para dar aos turistas garantias de  sol permanente. “Se chover, eu cubro as despesas de hotel”.Pois, essa semana choveu no Ceará, mas só em Fortaleza. São diferentes os períodos chuvosos na capital e  no interior. Aquela nesga de chuva que “a moça do tempo” anuncia na televisão acontece, em geral, somente no litoral, e quase sempre na ponta norte do estado. A ausência das chuvas é prenúncio de caos e de miséria.

             “Encontramos hospitais, postos de saúde e repartições públicas em estado deplorável. Lixo despejado nas ruas. Falta de profissionais de saúde, educação e assistência social. Materiais hospitalares, de limpeza, produtos alimentícios, peças, acessórios, combustíveis para os veículos, enfim, falta tudo.”  O relato é de Antonio Vieira, o novo prefeito de Acopiara, município do sertão, após assinar o termo de posse. Seu colega de Milhã (Monte Grave), povoação constituída por pequenos agricultores, comerciantes e criadores, Darlan Pinheiro, começou  advertindo sobre o lixo domiciliar e os entulhos acumulados nas vias públicas, advertindo que propiciam “ambientes propícios para uma epidemia”. Fundamentou assim  seu primeiro ato como prefeito: um decreto de calamidade pública.

           Há cem quilômetros dali, o leito seco da represa de Quixeramobim foi transformado em  campo de futebol pelas crianças.  Em, pelo menos, dez açudes e dezenas de pequenos cursos d’água da região,  as pessoas tentam plantar alguma coisa de resposta rápida. Receia-se perder o restante da umidade da terra  e, com ela, desaparecerem as plantações de subsistência. Cacimbas de água, abastecida por caminhões pipa, estão espalhadas por todos os lugares. As seitas salvacionistas reproduzem-se rapidamente.

            Visitando o Ceará, não especificamente para curtir o sol e as lindas praias – Jericoacoara, Canoa Quebrada, Morro Branco, Cumbuco, Iguape – busquei sentir  in loco a pulsação do coração daquele povo, descrita imaginariamente no meu livro “Codinome Beija Flor”. Esteticamente ela está representada  no museu Dragão do Mar, em Fortaleza, e nas artes de rua.  Mas, frustrou ver a bela praia de Iracema tomada por piers e espigões, decadentes mansões usadas outrora pelos coronéis para as segundas famílias – eles adquiriram novos formatos – e as excentricidades nordestinas sendo engolidas pelas falências e o desemprego.

           No interior, as terras tiveram também sua importância reduzida. A população no campo continua rareando, devastada pelas estiagens cíclicas – de 25 em 25 anos ; de 15 em 15, ou de 5 em 5 anos.O algodão, o feijão de corda, o milho  perderam a hegemonia na economia regional e a produção, quando chove, é consumida pelos 8 milhões de habitantes do estado. Entre a riqueza e a pobreza extrema, as carências apenas variam. Alguns resistem no sertão, disputando os poucos espaços de plantio com os animais  sobreviventes. O capim é raro e seco. A caatinga está lá, ressequidamente “braba”, uma muralha de espinheiros.

               Os efeitos da estiagem começam a ser sentidos já depois dos cajuais de Maracanaú e Maranguape. Em seguida, espalham-se pelos municípios de Quixadá, Quixeramobim, Senador Pompeu, Mombaça, Minerolândia, Boa Viagem , Tauá, Pedra Branca, e avançam sertão à dentro. Envolvem, assustadoramente, as mesmas cidades, cujos moradores mantinham trancadas as portas das casas por semanas, para se proteger dos saques, na invasão de milhares de retirantes  à procura de alimentos durante os períodos de seca.

               Passar por essas cidades, desembarcar e visitar os escombros das estações de trem em Senador Pompeu, atravessar a linha da estrada de ferro, já extinta,  dá sensação de total impotência. Naquele mesmo solo morriam de fome diariamente centenas de pessoas  vítimas das secas inclementes. Em 1937 a tragédia somava 75 mil flagelados. Para facilitar o apoio oficial, o governo de Getúlio criou por ali os tais “currais do governo” – uma concentração de miséria, sujeira e moléstias – que ficaram conhecidos pelos apelidos de Campo do Urubu ou Caldeirão de Santa Cruz, referindo-se à vida cotidiana dos flagelados, organizada por um beato chamado José Lourenço.  Receosos da repetição do episódio de Canudos, um misto de forças do governo e dos coronéis bombardeou o Caldeirão, e assassinou mais de 400 pessoas . Enterrados os mortos, os urubus arrancavam os corpos da terra.

               Este é o Ceará, terra cheia de contrastes. Sessenta e quatro cearenses acabam de ser aprovados nos exames para ingresso no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA)e no Instituto Militar de Engenharia(IME). O primeiro lugar também é deles:  uma jovem de 18 anos que passou em engenharia em cinco universidades. Há dois anos, um menino de Quixeramobim ganhou as Olimpíadas de Matemática e um grupo de alunos do 2º grau de Pedra Branca recebeu menção honrosa. E assim, no sertão, a vida dura flui crua, e sem organizações criminosas, nem escritórios de direitos humanos . Não significa que a morte foi abolida. Ao contrário, como nos velhos tempos da justiça pessoal, a morte é ainda um tema recorrente, venha de que maneira vier.

Ninguém tem medo dela. Vinga-se ainda a honra. Mas, de fato, “Não há homi que dê jeito nos problemas do sertão”. O negócio parece ser entregar mesmo para Deus. Independentemente disso, tem-se muito que aprender com os cearenses.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural

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