Até a próxima tragédia. Por *Antonio Claudio Mariz de Oliveira, Fábio Tofic Simantob e Hugo Leonardo

Até a próxima tragédia

Urge rever a política de encarceramento. Prendemos muito e prendemos mal

Publicado originalmente no Estadão, Opinião, página 2, 7-1-2017

A política criminal é como a economia, nem sempre o que agrada aos ouvidos do cidadão é melhor para o País. É uma ciência contraintuitiva. Estamos colhendo os danos da política demagógica, populista e irresponsável plantada durante décadas, focada apenas em prender, prender e prender.O Brasil investiga pouco e prende muito. Prende por delitos pequenos, como furto, tráficos menores, receptação e roubo (o mais grave da categoria, porque praticado sempre com violência ou grave ameaça). Precisamos urgentemente rever a política de encarceramento.

Dados recentes do Ministério da Justiça mostram que a população carcerária cresceu assustadores 575% nos últimos 26 anos. Rios de dinheiro foram gastos nas últimas décadas na construção de presídios e nem por isso a criminalidade diminuiu. Ao contrário, a própria prisão virou o incremento maior da criminalidade organizada, a mais perigosa, como mostram os últimos acontecimentos.

A mudança no sistema prisional passa necessariamente pela transformação de uma cultura que propaga ser a prisão a única resposta admissível ao crime. O sinônimo de punição é encarceramento. Ao contrário, o equivalente à impunidade é a ausência do cárcere. O dever estatal e o querer social são os de punir, e não de evitar o crime. Punir prendendo. Até nas hipóteses em que a liberdade do acusado não apresenta riscos, sua prisão provisória é exigida por uma sociedade que se tornou ávida por castigo e vingança.

O querer punitivo da sociedade é capitaneado por parte de uma imprensa que não se limita a informar, mas acusa. Não admite defesa, condena. Não deseja processo, quer punição.

Urge rever a política

de encarceramento. Prendemos muito

e prendemos mal

O paradoxo pouco percebido é que os esforços governamentais, que se cingem à construção de mais presídios, são direcionados para finalidades contrárias aos objetivos legais do sistema: não diminuem, mas aumentam a criminalidade.

O artigo 1.º da Lei de Execuções Penais afirma ser escopo do sistema proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado. Com facilidade se observa uma absoluta dissonância entre a lei e a realidade.

A ação governamental no setor penitenciário limita-se à construção de presídios. Não são criados subsistemas que possibilitem transformar a prisão em instrumento de readaptação do preso, restando ao sistema a missão de guardar, e mal, os que são trancafiados.

O Estado prende e não evita que a prisão exerça avassaladora influência sobre o indivíduo, aumentando extraordinariamente sua carga criminógena. Note-se, em abono, que o retorno ao cárcere atinge em torno de 70% da população carcerária.

O Brasil ostenta hoje o patamar de quarta maior população carcerária do mundo, atrás de EUA, China e Rússia. Mas entre eles é o campeão de prisões de acusados sem condenação. Nesse critério só perde para Peru, Marrocos, Paquistão, Índia e Filipinas. Na questão de superlotação, somos também um dos vencedores: temos metade das vagas para atender o número de presos.

A taxa do crescimento da população prisional é estarrecedora, como consequência da taxa de aprisionamento, que é a segunda maior do mundo, só perdendo para a Indonésia. Repita-se: não obstante tal fato, a criminalidade cresceu, como reflexo de uma política que só investiu em presídios, e não em formas inteligentes de reprimir o crime. Prendemos muito e prendemos mal.

Muitas dessas prisões são ilegais, mas há grande demora de parte da Justiça para revogá-las, quando e se isso vier a ocorrer. Ademais, como mostrou uma pesquisa da FGV, centenas de presos acabam cumprindo grande parte da pena em regime ilegal porque não conseguem a tempo corrigir nos tribunais de Brasília o erro cometido nas Cortes estaduais, que ainda relutam em incorporar a jurisprudência dos tribunais superiores.

Só que, em vez de facilitar o acesso dos presos aos tribunais superiores, o STF fez o inverso. Decidiu que, mesmo antes de uma condenação ser revista em Brasília, o réu já pode começar a cumprir a pena. Tudo indica que mais prisões ilegais serão efetivadas.

Medida que está ajudando a reduzir um pouco o ingresso de presos no sistema é a tão festejada audiência de custódia. A apresentação do preso a um juiz nas primeiras horas do flagrante é uma antiga exigência internacional, que o Brasil relutava em cumprir. Resultado do esforço pessoal do então presidente do CNJ, Ricardo Lewandowski, a audiência de custódia virou realidade em todos os Estados da Federação. Prevista no Pacto de São José da Costa Rica (artigo 7.º, 5), a audiência de custódia sofreu todo tipo de ataque, principalmente de setores da magistratura e do Ministério Público, instituições que deveriam zelar em primeiro plano pelos direitos e garantias individuais.

A apresentação do preso em juízo logo após a detenção é medida fundamental não apenas para coibir a tortura e os maus-tratos, mas também para funcionar como um filtro de racionalidade na porta de entrada do combalido sistema penitenciário. Fosse o Brasil um país dado ao cumprimento dos preceitos constitucionais e dos acordos internacionais que subscreve, vigoraria a liberdade como regra, como corolário do princípio da presunção de inocência.

Retirar da prisão quem lá não deveria estar significa reduzir a reincidência e evitar que as facções criminosas tenham mão de obra farta, ao ocuparem a lacuna deixada pelo Estado. Reduzir a mentalidade da prisão provisória significa punir melhor quem merece ser punido e evitar sofrimento para quem jamais deveria ter experimentado o cárcere.

Propiciar o mínimo de dignidade a uma população que carece e sempre careceu dos direitos sociais mais básicos, com o aproveitamento do cárcere para tentar supri-los, é dever impostergável da sociedade e do Estado. Se não assumirem consciente e permanentemente esse objetivo, só nos restará aguardar a próxima tragédia.

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Antonio Claudio Mariz de Oliveira, Fábio Tofic Simantob e Hugo Leonardo

*Advogados, conselheiro, presidente e vice-presidentes, respectivamente, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, IDDD

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