Ser branco dos olhos azuis. Por Meraldo Zisman
SER BRANCO DOS OLHOS AZUIS
POR MERALDO ZISMAN
… Foi assim: o presidente diz que a culpa da crise foi dos loiros de olhos azuis. E emendou dizendo que “não conhece nenhum banqueiro negro ou índio”. Pois eu conheço vários que são semitas, indianos, chineses, japoneses, mas nenhum deles é “loiro de olhos azuis”. (26/03/2009).
Aprendi desde criança que o Brasil é um país livre de preconceitos. Menino ainda, encontrei algumas manifestações de que eu era diferente. Apenas tentava ser igual aos demais. Navio Negreiro de Castro Alves foi o meu poema preferindo, para fazer lembrar a chaga da escravidão, perseguição e preconceito contra os africanos escravizados.
Quando deixei o Colégio Israelita tive o meu primeiro choque racial. Eu e meus colegas de mesma origem, conhecidos por judeus. Muitas vezes as xingações eram tantas que ocorriam brigas homéricas. ‘Te espero na saída’ e estava marcada a briga. Naquele tempo não se sabia nem de longe o que era o tal do bullying. Mas se fosse conhecido nós, judeus, sofríamos bullying. Patrício não significava ser brasileiro da gema, mas sim cognome de outro judeu. Assim fui crescendo e entendendo que era diferente, embora não o desejasse e tentasse ser igual à maioria. Era muito difícil.
Quando tentava namorar alguma moça era perguntado e soletrava o meu sobrenome, perguntavam sempre se era judeu. Os mais delicados indagavam se minha origem era alemã. Os que diziam admirar os israelitas o faziam na forma de elogio, destacando a inteligência, a sagacidade e outros atributos comerciais da raça privilegiada. Isso feria mais do que o próprio preconceito. Mesmo que não o desejassem, os autores de tais louvores ou distinções, ainda mais golpeavam este jovem cujos pais não eram mais que refugiados de pogroms e do holocausto. Sem falar da Inquisição que ainda permanece encruada nos descendentes dos nossos colonizadores.
Assim fui aprendendo que a vida em um país cristão era dura para um judeu. Apesar de o convencionalismo físico não estar explícito, o psicossocial estava presente e latente, sobretudo da classe média para cima…
O pior era quando me encontravam pela primeira vez e, no início da conversa, enumeravam um grande número de pessoas patrícias (compatriotas de mesma origem), achando que com isso iriam ganhar pontos comigo e serem politicamente corretos. Não sei para quê? Agradar a um estranho, filho de um modesto prestamista. E eu pensava, como aprendi ou li depois, sobre a cordialidade do povo brasileiro.
Do meu tempo de vestibular no Recife não tenho notícia de judeu que tenha se formado Bacharel em Direito. Para ser advogado ou entrar para magistratura tinha de ter sobrenome brasileiro.
Pertencer à nobreza canavieira, ter nome de família. Restavam para essa primeira geração de filhos de imigrantes apenas duas oportunidades no Recife. Os que davam para matemática faziam vestibular para Engenharia e para isso escolhiam fazer tanto o curso ginasial e como o científico no antigo Ginásio Pernambucano. Os que não possuíam propensão à matemática estudavam no Colégio Oswaldo Cruz, uma vez que a grade escolar desse colégio era mais orientada para as humanidade e medicina. Restava ainda a Escola de Química e algumas outras que atraiam alguns poucos filhos desses imigrantes.
As moças estudavam para Odontologia, Farmácia, Línguas, Filosofia e outras profissões humanísticas conhecidas por ‘espera marido’.
Para fugir à regra na minha família tive um irmão formado em Direito e um primo Engenheiro Agrônomo. O resto era Medicina ou Engenharia.
Os mais ricos estudavam para “inglês ver” ou para prosseguir o negócio paterno. Era já uma grande vantagem não haver cotas raciais para entrar como aluno em uma Universidade brasileira.
Assim fui aprendendo que a vida em um país cristão era dura para um judeu. Apesar de o convencionalismo físico não estar explícito, o psicossocial estava presente e latente, sobretudo da classe média para cima— a ferida do antissemitismo permanecia cruenta e vergonhosa, plantada pela infame Inquisição.
Falavam os mais velhos frequentadores da Praça Maciel Pinheiro de um Congresso Eucarístico Nacional (1939) que tinha por lema o refrão
” Quem não crê brasileiro não é”.
E como ficavam os não-católicos?
Ainda hoje as cátedras (hoje, sou professor titular) não podem ser ocupadas por judeus e somente conheci um catedrático judeu já falecido na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. E mais dois na Universidade de Pernambuco, na minha profissão. Ser judeu é ou era um entrave.
O Brasil é um país com preconceito disfarçado. Até que um dia alcança um mulato, pobre, operário e sem diploma superior a Presidência de República Federativa do Brasil.
Por incrível que parece é quem estabelece quotas raciais para as universidades. E termina dizendo em plena crise econômica mundial que os culpados são os brancos de olhos azuis.
Pela experiência de mais de cinco mil anos de perseguição fico com medo. Medo justificado. A nossa cor brasileira não é de raça e sim do local onde o grosso da população brasileira migrou para fugir das perseguições raciais, religiosas ou econômicas. Não importa se de própria vontade ou à força, como no caso dos escravos africanos.
Quanto à dizimação dos povos indígenas nem é bom falar, no momento. Somos todos brasileiros por opção ou imposição que se transmutou em grande orgulho de pertencer a esta Nação miscigenada.
Senhor Presidente da República Federativa do Brasil, não nos deixe com mais preconceito racial após o seu mandato. Os nossos problemas são outros. Não nos acrescente mais esse — pelo amor ao nosso querido Brasil.
Veja como Lula acabou? Se acabou.
(atualizada: 8 de janeiro de 2017)
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Meraldo Zisman – Médico, psicoterapeuta. Foi um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha)