Síndrome da China

Para quem acha que o debate sobre taxa de câmbio no Brasil é agressivo, a versão chinesa é, no mínimo, selvagem. Há pressões americanas pela revalorização do yuan e mesmo autoridades chinesas, preocupadas com os riscos crescentes de inflação, parecem considerar de forma cada vez mais concreta a conveniência de retomar a trajetória de apreciação contínua que prevaleceu entre 2005 e 2008. Aliás, não fosse a atitude americana, minha impressão é que a China estaria realmente muito próxima de alterar sua política (não seu regime) cambial, permitindo a apreciação da sua moeda.

Se isto for verdade, quais seriam as implicações para o Brasil? Apesar do peso maior da China em nosso comércio internacional (destino de 13% de nossas exportações), acredito que o canal mais importante de transmissão de uma eventual apreciação do yuan se daria através de preços de commodities e, portanto, dos termos de troca.

Para entender este processo, considere o seguinte exemplo. Imagine que haja só dois países no mundo, China e Resto, comercializando entre si uma commodity (petróleo). Há também duas moedas, o yuan (CNY) e o dólar (USD), trocados a uma taxa fixa de dois yuan por dólar. O preço do petróleo corresponde a USD 100/barril, ou seja, CNY 200/barril na China e presumimos que, a este preço, tanto a demanda chinesa quanto a do Resto sejam plenamente satisfeitas.

Suponha agora que a taxa de câmbio se altere, de modo que a moeda chinesa se valorize e sejam necessários apenas 1,5 yuan para adquirir um dólar. Caso o preço do petróleo continue a USD 100/barril, o preço na China cairia para CNY 150/barril, mas um pouco de reflexão sugere que esta situação não seria estável. De fato, a CNY 150/barril, a quantidade demandada na China teria que aumentar, pois o petróleo ficou mais barato para o consumidor chinês. Por outro lado, com o preço em dólares a USD 100/barril, não há redução na quantidade demandada pelos consumidores de Resto, o que configuraria uma situação de excesso de demanda por petróleo.

Face ao excesso de demanda, o preço do petróleo em dólares teria que subir, digamos para USD 120/barril, reduzindo a quantidade demandada pelo Resto (bem como a quantidade demandada na China sob a nova taxa de câmbio, que, ainda assim, permaneceria acima da quantidade demandada antes da mudança cambial), reequilibrando o mercado internacional.

O exemplo é, obviamente, muito simplificado, mas captura parte essencial do processo, qual seja, que a apreciação da moeda chinesa tende a elevar os preços em dólar de commodities. A bem da verdade, a evidência empírica sugere que o enfraquecimento do dólar (fortalecimento do yuan) é fortemente associado a preços de commodities (em dólares) mais elevados.

O Brasil, como exportador de commodities, naturalmente se beneficiaria de um aumento de seu preço em dólares. É claro que o país também as importa, mas, no balanço geral, observamos que preços mais altos de commodities se traduzem em melhora de termos de troca para o Brasil, isto é, o preço dos produtos exportados tende a crescer relativamente ao preço dos bens importados, permitindo que cada unidade exportada compre mais importações.

Num contexto de demanda doméstica crescendo mais rápido que o produto (10% ao ano contra 7% ao ano nos últimos 3 trimestres), pois, a revalorização do Yuan seria um presente para o país. Não resolveria (como no passado não resolveu) o descompasso entre demanda e oferta domésticas, mas mitigaria bastante a pressão sobre o balanço de pagamentos.

(Publicado 31/Mar/2010)

18 thoughts on “Síndrome da China

  1. Se isso acontecer, o povo consumidor todo vai ficar contente com dinheiro no bolso, mas os economistas da quermesse vão gritar até ficarem roucos reclamando de algum processo de desindustrialização que ele vão ter descoberto. A esquerda detesta quando o proletário enriquece.

  2. bom, esse é o ponto dos eua, se a china valorizasse o yuan o brasil e muitos outros países iam se dar bem. mas a questao que permanece é por que a china faria isso?
    abs
    sgold

  3. Apreciando câmbio o salário real da população aumenta. Ou seja, tem mais demanda vindo por aí que pode mais que compensar o setor exportador. Brasil é um exemplo

  4. "Porque é melhor fazer isso agora com uns 2 trilhões de dólares de reservas do que quando tiver 5 trilhões…"

    nao entendi.
    sgold

  5. o efeito balassa samuelson se aplica em países onde os salários não são determinados no mercado de trabalho? Na china os salarios sao determinados no mercado de trabalho?
    abs
    sgold

  6. "E melhorar o poder de compra de sua população seria efeito colateral…"

    existe alguma necessidade interna da china de se produzir esse efeito? tipo… pressoes eleitorais?

    dada a dinamica demografica na china, mais importante do que aumentar o poder de compra nao seria garantir o emprego dos que abandonam o campo em direcao à cidade?

    abs
    sgold

  7. Para uma taxa de câmbio fixa, se a inflação do país A for maior que a do país B, a taxa de câmbio real do país A irá se valorizar ou desvalorizar ?

    Uma aumento da inflação em A torna os produtos em B relativamente mais baratos o que caracteriza uma valorização cambial, não é ?

    Por outro lado, quando sobe a inflação uma moeda perde seu poder de compra, então soa estranho dizer que ela se valorizou.

    (Sei que a dúvida é básica, perdoem meu desconhecimento)

    Grato,

    André

  8. "Na china os salarios sao determinados no mercado de trabalho?"

    Tudo indica que sim, tanto que vêm subindo e há competição, inclusive entre províncias, para atrair mdo (cf. Financial Times, 19/03/10)

    Guangdong, China's biggest export centre, announced yesterday it would raise the provincial minimum wage by an average of more than 20 per cent.

    The move comes amid growing worries about inflation and complaints from factories in Guangdong and elsewhere about unfilled jobs as they rush to complete a surge in orders since February.

    "A lot of our workforce traditionally come from the poorer regions in western China, but factories are moving out there to take advantage of cheaper wages and lower taxes," said Au Yiu-chee of Hong Kong, who owns a textile factory in the town of Dongguan in Guangdong. "Those workers who used to come here can now find work close to home . I don't think we will see many of them moving back here."

    http://www.ft.com/cms/s/0/4262374c-32f6-11df-bf5f-00144feabdc0.html

  9. Para a China, dado o status quo vigente (leia-se poupaça forçada, fora das decisões das famílias) pode fazer sentido essa política cambial, tanto que crescem aceleradamente. De qualquer forma, resta a pergunta: poderíamos fazer algo pra contrabalançar os efeitos negativos dessa politica chinesa? Me parece que pouca coisa, até porque a melhor proteção é o câmbio flutuante.

  10. Lembrando krugman
    Paul Krugman

    Realmente não sei o que dizer a respeito da coluna de Steve Roach sobre a China publicada hoje. Parece que ele não leu nada daquilo que escreveram os que pedem uma posição mais rigorosa em relação ao yuan. A argumentação toda parece sugerir que os críticos da China estão concentrados no desequilíbrio bilateral entre China e Estados Unidos, sendo que eu já esclareci que este não é o aspecto importante da questão:

    Em quarto lugar, é um equívoco concentrar-se apenas na concorrência direta entre China e EUA. Em muitos casos, as exportações chinesas concorrem com aquelas de outros países em desenvolvimento. Se a cotação do yuan subir, esses países se tornarão mais competitivos – e também verão uma apreciação de suas moedas frente ao dólar, oferecendo novos canais para trazer empregos e serviços a esses países. Isso pode soar como especulação, mas não é: lembre-se, se a China puser um fim à sua exportação artificial de capital, isso aparecerá nos fluxos comerciais de uma maneira ou de outra.

    E a insistência dele de que uma mudança no valor do yuan não alteraria os equilíbrios mais amplos porque estes são um reflexo das poupanças parece implicar não apenas que Roach é adepto da doutrina da transferência imaculada como também que ele ignora o fato de que o mundo sofre com um profundo desemprego e está numa armadilha de liquidez.

    Não estou necessariamente certo a respeito da China. Pode-se argumentar, por exemplo, que os perigos do confronto superam os ganhos potenciais. Mas este tema merece mais do que uma representação deliberadamente equivocada dos falcões do yuan e a citação de antigas falácias macroeconômicas.

  11. ALex,

    em uma eventual apreciação da moeda, estamos falando de quanto na sua opinião ?? 3%, 5%, 10% ou mais ?

    e quanto seria o "mínimo ideal" ?

    abraços

    Teco

  12. Teco:

    Não há mínimo ideal. Sem saber termos de troca, por exemplo, não há como definir a taxa de câmbio de equilíbrio.

    O que eu esperaria é um ritmo de apreciação na casa de 5% a 10% ao ano (no último ciclo a velocidade foi cerca de 6,5% ao ano).

    Abs

    Alex

  13. valeu Alex, na verdade fiz a pergunta ficar idiota …

    se fosse pra mexer, seria estranho que fosse 2% ou 3%. A questão é em apreciando 5% ou 10%, por exemplo, eles conseguiriam "segurar" nesse novo patamar ou poderíamos ver uma "piorazinha"

    abraços e parabens pelo texto. Como quase sempre, perfeito !!!

    Teco

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